sexta-feira, 10 de dezembro de 2021

Pretos e supermercados


A vida de uma pessoa preta no Brasil não é lá coisa muito fácil. Vivemos num país cujo racismo estrutural o é por causa da insistência do poder público em não assumir sua histórica tolerância à animalização de pessoas de pele escura. Convenhamos que esse sintoma é também indício da continuidade desse crime cultural, patrimônio histórico da burguesia e item de colecionadores de classe média e C, sem esquecer dos compradores de réplicas falsificadas desse racismo, os racistas das classes D Etc.

Aliás, no Brasil, o racismo não é sintoma de nada. Ele é "sinthoma", mesmo! É algo que constitui e assujeita o sujeito Brasil, não apenas responde por parte de seu comportamento e de sua subjetividade. É um Insight que a obra lacaniana nos possibilita. Difícil ter insights não fúnebres quanto ao analisante Brasil, confesso!

Tudo começa na manjedoura. Pretos, das diferentes tonalidades, têm lugar predeterminado de nascimento - e não é na Ponta Verde ou no Farol, na Avenida Paulista ou no Leblon. Esses pretos, de tonalidades diferentes, todos sofrem racismo. Há apenas uma variação na intensidade, a depender do seu grau de familiaridade com os traços do preto africano - e essa variação precisa ser levada em consideração para os efeitos mais práticos do racismo e suas matizes.
O preto brasileiro cresce entrando de cabeça baixa no supermercado, com o "não" estampado na cara e engatilhado na ponta da língua do papai e da mamãe, pronto a disparar e conter o perigoso "mãe, compra iogurte?!". Há um lugar para o preto no Brasil, e não é o da realização de desejos. A adolescência das meninas e meninos pretos também decepcionaria qualquer sonhador. Não se encaixam nos padrões de beleza impostos pela indústria televisiva, cinematográfica; servem apenas como amantes, ficantes, raramente como maridos ou esposas de pessoas brancas por quem venham, por acaso, a se apaixonar.
Adultos, quando optam pelo esforço sobrehumano de se destacarem nas suas profissões (que, por jogo do destino, consigam desenvolver), continuam marcados pelo estereótipo do ladrão, suspeito, que obteve qualquer bem material por meio do roubo, do furto. Assim, o cuscuz, o frango, o leite, o iogurte que porta na cestinha do supermercado é motivo de atenção para os seguranças. É um fenômeno que carece esquema de segurança, de "prevenção de danos" - ao cuscuz, ao frango, ao leite, ao iogurte, à cesta. O segurança preto da guarita passa o rádio para o segurança preto do corredor. Um sinal e outro e, pronto, o esquema de escolta está montado. Se você for preto, verá, ao menos, 3 vezes o segurança, quando estiver percorrendo os corredores do "patrimônio do playboy", como dizem os Racionais MC's.
Acompanhado solenemente pelo feitor, sua ida ao supermercado num dia de folga vira um pesadelo. Tratado como criminoso em potencial, você é obrigado a disfarçar o seu "banditismo", passa a se comportar como um suspeito e, assim, retroalimenta a desconfiança incondicional dos investigadores de mercadinho. Quando não incorpora o fugitivo, você personifica Zumbi dos Palmares e, então, confronta os operadores do racismo, se impõe, rebate a violência sofrida, a elabora em palavras.
- Algum problema, irmão?! - pode o investigado exclamar, em tom de interrogatório... perdão! Interrogação*. É que a gente entra na personagem!
O preto pode ser mais direto:
- Não vou roubar nada, não, viu?! Não se preocupe. Você deveria se preocupar com o playboy que acabou de entrar ali...
O resto da vivência não dá pra escrever, só viVENDO.

quarta-feira, 9 de junho de 2021

Amor e álcool - Coluna Polis & Cia

Era mais um dia de domingo comum em Maceió, AL. Eu saí de casa paramentado pra um compromisso. No ponto de ônibus, chegou um rapaz, certamente mais velho que eu, com uma flanela e um borrifador com álcool.

- Rapaz, só eu vim trabalhar hoje?! Não tem um vendedor na rua! - Exclamou, sorridente, a mim e a outras poucas pessoas que estavam ali.
- Sim. Não tem muitos passageiros nos ônibus, dia de hoje - Respondi.
- Cara, você já ouviu falar num negócio chamado neoliberalismo? - Me perguntou, enquanto sentava-se.
- Sim. Com certeza! - Respondi, curioso.
- Eu tô lendo um capítulo de um livro que fala disso. O livro chama "Novo Enem". É de uma autora... esqueci o nome dela... Já ouviu falar?
- Não, não... - Respondi, tentando lembrar o nome de Naomi Klein, que poderia ser a autora a quem ele se referia.
- Deve ser bom, né? O "Novo" tá assim, entre aspas, aí, vem: "Enem e o dono da voz". - Explicou, demonstrando haver entendido alguma intenção irônica no título, mesmo que os sinais realmente aplicados sejam os colchetes.
- Sim. Deve ser bom. Nunca ouvi falar sobre esse livro. Você sabe de quando é? - Respondi e perguntei.
- Ele tá aqui na minha maleta. Deixa eu te mostrar! Eu achei esse livro no lixo, você acredita?
- Acredito!! - Respondi sarcasticamente, porque novidade seria ver um livro desses na estante de algum brasileiro.
- Esse livro, essa maleta... tudo, eu tirei do lixo... Porque eu sou capaz de meter a mão no lixo, mas não meto a mão no seu bolso pra tomar o que é seu. - Continuou.
- Tudo meu é achado no lixo, mas não pego do bolso de ninguém. - Repetiu em voz alta, para as outras pessoas ouvirem, demarcando seu lugar de fala como um trabalhador, honesto, dócil.

Ele, por algum motivo, desistiu de abrir a maleta. Talvez porque o ônibus que ele esperava poderia aparecer a qualquer momento e seria uma correria guardar de novo o livro enquanto embarcasse.
- As pessoas jogam tanta coisa boa fora! - Comentou.
- Concordei, com minha expressão, que foi interrompida pela prontidão a entrar no Eustáquio/Cruz das Almas/UFAL.

Ele pegou o mesmo ônibus.

Enquanto eu passava pela catraca, ele já se dirigia ao corredor do ônibus.

- Boa tarde, pessoal! Me chamo ******, sou morador de rua, vivo em Maceió há ** anos. Hoje, eu estou aqui cumprindo minha liberdade de expressão, prestando um serviço à população brasileira. Hoje, nós vivemos uma situação dessa pandemia e vou tá passando essa flanela com álcool 70 no ônibus, exercendo meu direito de cidadão. - Apresentou-se, mais ou menos com essas palavras, aparentemente empolgado pela relevância de seu trabalho.

Relevante demais!

Poucos dias antes, quando vi pela primeira vez um outro rapaz prestar esse serviço, comentei com meu irmão sobre a importância desse trabalho no contexto da pandemia. Nesse dia, cheguei a pensar que esse outro rapaz era um funcionário da empresa de viação. Mas, claro, estamos falando de neoliberalismo... Os cobradores (que são os cobradores!) estão sendo descartados em nome do aumento dos lucros e a adição de 2 passageiros em seu lugar, quê se dirá da contratação de qualquer funcionário?! Óbvio que aquele rapaz não era um funcionário da empresa de ônibus!

Pois bem... Depois de alegremente higienizar algumas partes do ônibus e as mãos dos passageiros, como um trabalhador que se orgulha da relevância de seu trabalho, o rapaz lá do ponto de ônibus sentou-se ao meu lado, borrifando álcool nas minhas mãos (e coxas, rsrs).

- Deixa eu te mostrar, aqui, a capa do livro, pra você depois pesquisar. - Disse-me, recebendo de mim uma das moedas daquele ônibus e abrindo a maleta.

Vi o livro.

"[Novo] Enem e o dono da voz", de Joana D'Arc Ferreira de Macêdo e Elione Maria Nogueira Diógenes (2014).

- Legal. Valeu! - Agradeci.

Ele desceu às pressas no antigo Hiper. Estávamos indo no sentido Cruz das Almas.
Me senti extremamente motivado pela inteligência e força de vontade daquele homem. Me alegrei, principalmente, pelo capítulo que ele iria começar a ler.

Provavelmente, ele já leu esse capítulo e, certamente, depois dessa leitura, muita coisa vai mudar no seu modo de agir e de ver o mundo, o trabalho, os conceitos de direitos e deveres, o conceito de trabalhador, cidadão... Ficará mais difícil para ele confundir "direito" e "dever" e ele entenderá o que, provavelmente, fez com que esse livro estivesse no lixo. O conhecimento trazido por esse livro (que, aliás, tenho a obrigação de ler!) dará mais ferramentas a esse cidadão que espalhou amor em forma de álcool naquele ônibus repleto de trabalhadoras descontentes com o "rodo cotidiano", parafraseando "O Rappa", com o troco "pouco, quase nada" da passagem.

Bom, pelo menos, é isso que eu espero do capítulo... e do leitor.

Especialmente naquele dia, eu estava ciente da gravidade do quadro do tio Fábio, na UTI Covid-19, em Arapiraca. Eu sabia que ele não sobreviveria à falta de amor, de compaixão, de patriotismo, de bom exemplo, de álcool 70, de máscara, de vacina. Sabia que ele não realizaria o seu desejo, comunicado a mim na nossa última conversa, de comprar uma moto de alta cilindrada e viajar o Brasil. Eu sabia que não teria mais a ocasião de dizer que ele estava certo sobre o conjunto de direção da minha moto.
Tudo isso me angustiava e revoltava nessa pequena viagem. Porque, afinal, o que parecia ser abundante nesse herói das ruas, tem saldo negativo no governo federal. Não existe, no Planalto, o que Freud chamaria pulsão de vida e o que Hannah Arendt chamou "amor mundi"... Faltou e falta o patriotismo desse rapaz, o seu amor pela vida.

Afinal...

"Um catador faz mais que o ministro do Meio Ambiente [etc.]".

Dedico ao amigo, agente de saúde autônomo e ambulante, a música "O bem", do grandioso Arlindo Cruz. 

Samuel Melo é um psicólogo e psicanalista, formado em psicologia na Universidade Federal de Alagoas. Preto, maceioense do Trapiche da Barra.

Anderson Samuel da Silva Melo - CRP-15/6004

Instagram: @samuelmeloal
WhatsApp: (82) 9 8810-7158

domingo, 25 de abril de 2021

Resultados da psicoterapia - Coluna Saúde-se

Na prática da clínica psicanalítica, está clara para o psicanalista a existência de duas categorias importantes para a direção do tratamento: 1) a dimensão do pensamento e 2) a do acontecimento. Elas não são criadas no consultório, nem, tampouco, só aparecem ali, mas fazem parte da nossa experiência de vida. No cotidiano e ao longo de nossas histórias pessoais, apenas uma parte muito pequena dos acontecimentos é percebida por nossa consciência e processada em forma de pensamento. Assim, já se pode perceber, de acordo com essa hipótese, que não estamos, definitivamente, no controle absoluto das situações. Demais disto, a parte muito pequena dos acontecimentos sobre a qual nós ainda temos alguma participação e possibilidade de relativo controle, sofre com a imprevisibilidade do acaso e a ação de motivos inconscientes que reivindicam para si autoria nas decisões e rumos que tomamos.

"O Eu não é senhor em sua própria casa", já nos disse Freud. Se é que a "casa" - o corpo, os pensamentos, os afetos - é mesmo do Eu - essa entidade que percebe, pensa, quer, deseja e que permite que um certo Samuel escreva um texto falando sobre resultados de uma psicoterapia.
Uma vez reconhecida essa dimensão do acontecimento inconsciente, que independe do pensamento e da consciência, falemos um pouco sobre como isso fornece material de compreensão para nós, analistas, conduzirmos os casos que atendemos. Lembrando que o "acontecimento inconsciente" seria algo como o representante humano da dimensão da natureza e seus acontecimentos até então inevitáveis e incontroláveis - e aqui não estão incluídos, é claro, aqueles eventos sabidamente relacionados com mudanças climáticas decorrentes da ação humana.

Durante algum tempo, durante o meu período de estágio em psicologia, atendi uma pessoa que parecia não dar a mínima para o que eu lhe falava... A pessoa parecia muito mais preocupada em descarregar tudo o que nunca falou para ninguém em sua vida, sem enxergar necessidade ou sem querer ouvir qualquer palavra proferida por mim, como analista.

- E agora? - pensei, por semanas.

O trabalho do analista se dá, exatamente, através da interpretação do que ouve e do ato analítico, que, muitas vezes, é praticado através da palavra do profissional. O que eu iria fazer, então? Parecia que o meu trabalho ali estava sendo feito em vão.

Mas, com o passar do tempo, no ritmo da minha curiosidade e angústia, por querer desenvolver um trabalho adequado, fui percebendo que algo acontecia na experiência daquela pessoa... Mudanças ao nível do seu comportamento e do direcionamento de sua atenção - ela passava, a cada semana, a me falar sobre coisas que decidia fazer e deixar de fazer, que lhe distanciavam do rumo autodestrutivo que até então seguia; falava sobre como refletia a respeito de suas avaliações dos acontecimentos de sua vida, aproximando-se, cada vez mais, de soluções pautadas na preservação de sua vida e de seu bem-estar. A psicoterapia estava surtindo, justamente, os efeitos que eu buscava com minhas intervenções.

O que aconteceu?

Bom, eu percebi que, na prática, diante de mim estava uma pessoa, como qualquer outra, "dividida", no sentido freudiano e lacaniano do termo... Uma pessoa dividida ao meio... Metade consciente, metade inconsciente.

A consciência daquela pessoa poderia até não me dar ouvidos (não posso dizer que se tratasse disso!), mas seu inconsciente, com sua memória infalível, estava atento ao que um jovem novato da psicanálise falava. O inconsciente daquela pessoa estava, a cada sessão e a cada dia, dentro e fora daquele consultório ensolarado da clínica-escola, se apropriando e integrando em seu curso de palavras, as curtas frases que eu gotejava naquela esteira de significantes que passava diante de mim uma vez por semana.

Poderia ser que aquela pessoa sequer pensasse sobre o que eu falava, mas minhas intervenções produziam efeitos ao nível dos acontecimentos, sem dúvida! Considerando a hipótese de ela mesma não perceber tais resultados (o que não foi o caso!), ainda assim, eu poderia reconhecê-los como resultados positivos, de um ponto de vista técnico, considerando os objetivos gerais de uma análise, ou seja,  mitigar o sofrimento e impulsionar o sujeito para longe da pulsão de morte e para perto da pulsão de vida.

Creio que lhes apresentei um bom exemplo do que são essas duas dimensões importantes na clínica - o pensamento e o acontecimento; e que pude esclarecer algo sobre os resultados de uma análise/psicoterapia.

Na clínica, as coisas não somente são ouvidas ou faladas.
Na clínica, as coisas acontecem!

Samuel Melo é um psicólogo e psicanalista maceioense, preto; formado em psicologia pela Universidade Federal de Alagoas (2020), ex-estagiário do Serviço de Psicologia Aplicada do Instituto de Psicologia da UFAL.

Instagram: @samuelmeloal
Anderson Samuel da Silva Melo - CRP 15/6004


sábado, 24 de abril de 2021

Psicanálise, preços, desigualdades sociais, Maceió - Coluna Polis & Cia

Os principais esforços no início de qualquer atendimento psicanalítico devem ser direcionados à construção de um ambiente propício à emergência da fala do sujeito. E isso implica uma gradativa passagem de aspectos objetivos para elementos mais propriamente subjetivos, mesmo que a queixa, aquilo que leva uma pessoa a procurar nossa ajuda, seja, naturalmente, algo da ordem do sofrimento psíquico. No fundo, a separação entre o que seria objetivo e o que se caracterizaria como subjetivo é apenas um esforço didático, pois prevalece no acontecer humano uma interação interdependente desses dois aspectos.

Mesmo que uma analista ou outra não concorde com essa maneira de acolhimento que proponho aqui, ela ou ele dificilmente discordarão que são, primeiramente (depois da queixa, evidentemente) as condições e coisas objetivas que trazem qualquer sujeito ao seu consultório, - como, por exemplo e possivelmente: o número do WhatsApp, do telefone, o endereço do consultório, o ônibus, a cadeira de rodas, a bicicleta, o carro, a moto do analisante, sua renda, o acesso à internet, o crédito no celular e, por fim, o currículo do analista, que é o que, basicamente, sustenta sua ''boa fama", em muitos casos ("onde ela se formou?" "Fez especialização?" "Atende há quanto tempo?" "Tem quantos anos de idade?" etc.). E esse currículo tem migrado, cada vez mais, da plataforma Lattes para o Instagram e redes semelhantes, o que mostra como estamos cada vez mais percebendo a necessidade de lançar mão de ferramentas bastante objetivas de alcance ao público.

Meus colegas psicanalistas certamente, neste ponto, podem fazer uma objeção, lembrando do fato de que, muitas vezes, é o testemunho da experiência de uma analisante ou outra que leva algumas pessoas ao consultório de um psicanalista e, se isso é verdade, o que está em jogo nessa comunicação "boca a boca" é algo de ordem subjetiva - as avaliações da qualidade do serviço do analista, expressas em frases como: "ela deixa você falar e respeita o seu tempo", "ele deixa você à vontade", "ela fala coisas que vão direto ao ponto e esclarecem muitas questões que você nem tinha percebido", "ela tem uma memória muito boa! Lembra de tudo que você já falou." Observo, contudo, que, em conglomerados como Maceió, Alagoas, onde os índices de vulnerabilidade econômica são alarmantes, há grande chance de a frase "ela negocia o preço das sessões de acordo com o que você pode pagar" ser um enunciado igualmente potente, equivalendo às análises subjetivas positivas sobre a qualidade do atendimento. E, vale dizer, essa frase aponta para um fator inegavelmente objetivo, algo do "Real"... Mas, calma, colegas! "Real", no sentido monetário... Nossa moeda nacional. Não me refiro ao registro lacaniano do Real. 

Trocadilhos à parte, quero chamar a atenção do leitor, principalmente meus colegas de consultório, para a séria questão do acesso à psicanálise, a necessidade de assumirmos, em Maceió e em localidades onde a pobreza faz parte da paisagem, o compromisso de construir estratégias de difusão da psicanálise como patrimônio público, sem abrir mão, é claro, da garantia de crescimento material e profissional dos próprios analistas, uma vez que a psicanálise, aqui em Maceió, tem se mostrado um potente instrumento de ascensão social a muitos profissionais recém-formados e provenientes das classes sociais menos favorecidas, como eu mesmo - analistas também pagam e atrasam boletos!

Acredito que, na capital alagoana e nas cidades do estado, como psicanalistas, devemos fazer algo como o que Freud e os pioneiros da psicanálise fizeram na Europa há, mais ou menos, um século, no período entreguerras. O que os primeiros psicanalistas fizeram, principalmente em Viena e Berlim, foi um marco histórico, que Elizabeth Ann Danto (2019) nos expõe como resultado de uma minuciosa escavação e análise de achados da história da psicanálise, e que reposiciona essa frente teórica e clínica como essencial e historicamente comprometida com a justiça social e o combate às desigualdades sociais, diferente do que muitos escritores e professores difundem nos livros, revistas e salas de aula.   

Entretanto, se as críticas de que a psicanálise seria uma clínica elitista existem, deve ser porque alguns psicanalistas, talvez, se fechem à possibilidade de ampliar e fazer chegar às periferias o atendimento psicanalítico. Penso nisso como possível fruto da cultura dos consultórios médicos brasileiros que, como todos sabemos, prezam, em grande medida, pelo encarecimento de seus serviços, permanecendo indiferentes às condições econômicas dos locais onde atendem. O que contradiz meio mundo de termos de seu juramento de formatura - "enfim, a hipocrisia!"

No que toca à atitude dos psicanalistas, não posso afirmar isso peremptoriamente com respeito a qualquer território de ação da psicanálise brasileira, nem, tampouco, no tocante ao território maceioense e alagoano. Só posso dizer que, em Maceió, o receio com relação ao preço do atendimento é muito frequente nos contatos que recebemos cotidianamente. E isso implica, a meu ver, a necessidade de ações mais ativas e diretas por parte de nós, profissionais, a fim de que possamos dizer aos maceioenses que, nos consultórios de muitos psicólogos e psicanalistas, não somente as emergências mais propriamente subjetivas recebem atenção, mas também o caminho até elas - questões como "quanto custa a sessão ou a mensalidade?" são tidas como parte do processo de análise e psicoterapia, porque, se a pessoa não puder pagar pelo atendimento, ela não será atendida; logo, não haverá psicanálise. Assim, sei de muitos colegas que, tal como eu, veem o pagamento muito mais como uma questão de condução do caso do que como uma questão administrativa - seguindo o exemplo do movimento psicanalítico entre 1918 e 1938.

Atender as populações menos favorecidas e aquelas em extrema pobreza, aliás, frequentemente se mostra uma atividade rentável para os psicanalistas, o que aponta um caminho bastante promissor, principalmente para jovens analistas, que gozam, muitas vezes, de menor notoriedade em relação a analistas mais antigos e podem encontrar nesse esforço de inspiração humanitária uma rica maneira de fazerem seus nomes circularem. Isso porque, se, por um lado, o preço pago por algumas pessoas pode ser considerado baixo, em termos do custo de vida do analista, essa abertura a uma negociação justa multiplica o número de analisantes, gerando rentabilidade. O que acontece é algo como o comércio de produtos de baixo custo, mas de alta rotatividade - como o Cremosinho, por exemplo. O dono da fábrica certamente ganha uma grana, mesmo seu produto sendo muito barato. Isso acontece porque ele vende muito, justamente por ser barato. 

"Mas, Samuel, a gente estudou e estuda tanto... A gente merece ganhar bem."

Sim! Merece, e muito! Mas nossa profissão também é uma missão. Na colação de grau, prometemos contribuir para o desenvolvimento do gênero humano. E essa me parece uma boa forma de cumprir esse juramento. Assim como existem muitas pessoas que só podem pagar um pouquinho, tem gente que vai poder pagar valores mais altos. Estabeleça sua média e moda (valor mais frequente negociado) de preços para os dois tipos de público... Isso ajuda muito na organização da receita.

Eu também vejo, na minha experiência, como os ganhos terapêuticos e analíticos da psicanálise podem colaborar, em grande  medida, com o crescimento não só pessoal, mas, inclusive, material e profissional das pessoas atendidas. Vejo como uma pessoa cada vez mais capacitada para lidar com seu sofrimento aumenta suas chances de ascensão social, vejo como passa a ganhar mais dinheiro, mesmo... E, assim... Não é por nada, não. Mas, também, passa a poder pagar mais caro pelo atendimento, o que mostra como essa relação analítica de parceria, de acolhimento técnico, acaba fazendo bem para as duas partes.

Freud e os pioneiros da psicanálise, assim como inúmeros políticos e atores sociais, principalmente de Viena, achavam que o acesso à psicanálise "seria a libertação das pessoas. Para conseguir que elas ficassem realmente livres de neuroses, para que estivessem mais preparadas para [realizar e gozar a vida] [1]", como disse Freud. (Recorte de entrevista de Helen Schur, esposa do médico pessoal de Freud, a Elizabeth Ann Danto, em 1995. [Cf.: DANTO, 2019, p. XLI]).[1]

Eu também acredito nisso!


Samuel Melo é um psicólogo e psicanalista maceioense, negro; formado em psicologia pela Universidade Federal de Alagoas (2020).

Anderson  Samuel  da Silva  Melo - CRP-15/6004

Instagram: @samuelmeloal

WhatsApp: 55 82 9 8810-7158



Notas e referências

[1]DANTO, Elizabeth Ann. (2019). As clínicas públicas de Freud: psicanálise e justiça social, 1918-1938. Trad. Margarida Goldstajn. São Paulo: Editora Perspectiva. (Coleção estudos; 368/coordenação J. Guinsburg (in memoriam).

Esforços atuais de tradução da obra freudiana têm apontado como errônea a tradução "trabalhar e amar", preferindo os termos "realizar e gozar". (Conferir: FREUD, Sigmund.. 2019. Amor, sexualidade, feminilidade. Trad. Maria Rita Salzano Moraes. 1. Ed.; 2. Reimp. Belo Horizonte: Autêntica Editora. (Obras incompletas de Sigmund Freud ; 7).

Experiência de cidade. (2021).

Experiência de consultório. (2021).

sexta-feira, 23 de abril de 2021

O ganho terapêutico e o voo em Marte - Coluna Saúde-se

 ‌‌‌‌‌Com a palavra, a palavra, que vale mais do que mil imagens...

O texto de hoje serve muito mais aos colegas de profissão, por causa do uso de termos técnicos sem uma explicação do que eles significam. Mas tenho certeza que qualquer pessoa que o leia sairá ganhando.

Vamos lá!

Uma moção essencialmente imaginária, quando não acolhida e processada majoritariamente pelo registro simbólico, opera a mais diversificada gama do sofrimento psíquico e, por conseguinte, de sintomas. O papel da análise, como fortalecedora do "sistema operacional" simbólico, não é extinguir o registro imaginário e suas moções, mas sim amparar o sujeito com elementos simbólicos capazes de dissipar as frequentes "nuvens imaginárias" que produzem sofrimento e sintomas pouco conectados com a "realidade" - ou seja, com o conjunto de fenômenos, coisas e acontecimentos que obteve, ao longo da história da humanidade, o status de "realidade", por ser capaz de apresentar algum grau, ainda que irrisório, de constância e gozar, por isso, de certo consenso nas comunidades científicas e filosóficas. Assim é que, por exemplo, uma pessoa não analisada, ao ser atingida por uma "nuvem imaginária", cuja gramática possa se traduzir pela  frase "nada na minha vida está indo como eu gostaria", terá grande chance de ser acometida de um sofrimento muito amplo, obedecendo a essa frase e ignorando possíveis "fatos mais realistas" (observadas as questões da ideia de realidade apresentadas acima), como a sua factual realização material e financeira, por exemplo. Por outro lado, uma pessoa analisada, seja por ato direto do analista, seja por reflexão do próprio analisante, provavelmente, responderá a essa nuvem imaginária com "jatos simbólicos dissipadores" traduzidos por frases como: "na verdade, há setores da minha vida onde tenho obtido realizações, como a parte financeira", "as áreas da minha vida onde as coisas não estão indo como eu gostaria, representam apenas uma parte da minha vida e não o seu todo". Nesse sentido, a ação simbólica frente ao imaginário representa, muitas vezes, algo como "um ponto de basta" numa moção, frequentemente poderosa, que surge com o potencial de produzir sofrimento sem objeto ou objetos minimamente definidos, considerando quais sejam os jogos discursivos, os símbolos e signos da cultura à qual o sujeito pertence e, ainda, a sua avaliação, nesse contexto, de onde se inclui ou se exclui, enquanto integrante do corpo social. 

‌Basicamente, podemos dizer que o aparelho psíquico, ao se estruturar tal como uma linguagem, dispõe do registro simbólico como eficiente leitor dos códigos criptografados do registro imaginário. Acredito que podemos dizer, ainda, que o registro simbólico opera uma tradução das imagens (do imaginário) em palavras, produzindo um processamento de dados que, frequentemente, afasta o sujeito do mal-estar. As palavras são o modo de tradução da realidade (e do Real) que produz os efeitos mais duradouros nos humanos, ainda que essa tradução seja impossível e estejamos condenados a somente traduzir os fenômenos do corpo, do aparelho psíquico, da terra e do universo sob o predicativo do "como se".

‌Tão inevitável como a condição do "como se" na interpretação humana de coisas e fenômenos, é a leitura de toda e qualquer coisa como se fosse um texto e, obviamente, possuidora de palavras a serem traduzidas, sejam escritas (como os hieróglifos, por exemplo), sejam faladas, como confessam, indiretamente, as ciências astronômicas, ao investirem em equipamentos cada vez mais sofisticados, capazes de captar ondas de rádio ao redor do universo, as quais poderiam conter códigos linguísticos de outras civilizações - vivas ou mortas. 

‌Todo e qualquer avanço na descoberta de algo desconhecido e na sua compreensão, passa pela palavra. 

Isso não significa dizer que haverá qualquer tipo de controle, por parte do analisante ou do analista, qualquer tipo de submissão dos pensamentos, afetos e impulsos a uma razão absoluta. Trata-se, em contrário, de inserir no discurso do sujeito a dimensão da averiguação dos fatos, com base na inserção da dúvida, recorrendo ao máximo de significantes que se possa extrair de sua fala.

‌Trata-se de reposicionar o seu pensamento, de S1 (um significante-mestre, dogmático, que bloqueia a reflexão) em S2 - uma infinidade de significantes, que impulsiona o sujeito no sentido da construção de várias hipóteses sobre o que significa o seu sofrimento.

‌Ao público geral, aconselho: fale com um psicanalista! 

Ao colega de profissão: fale como e com uma psicanalista!