domingo, 25 de outubro de 2020

Meu analista tá me ouvindo? - Coluna Saúde-se

Qualquer pessoa que se coloque diante de um psicanalista vez ou outra se inquietará com a forma da conversa que se desenrola na sessão. Por vezes ela pode ter a impressão de que o analista não entende ou, simplesmente, ignora uma parte do que ela fala. Bom, geralmente não é isso que de fato acontece numa análise. Posso dizer que, na maioria dos casos, essa forma de escuta é um indicativo de que o analista segue fazendo bem o seu trabalho. isso porque o que está em jogo na análise, antes de qualquer coisa, é o desvendar do inconsciente, as suas tramas e formações, de um modo geral. E embora isso só seja possível com o auxílio da consciência - que permite ao analisante encontrar o consultório, pegar um ônibus ou dirigir até lá, telefonar, falar -, é ao inconsciente que o analista voltará os olhos e os ouvidos, o corpo e a sua voz, sempre que ele aparecer na fala da pessoa atendida. Um exemplo bastante ilustrativo disso é quando o analista percebe, na fala do analisante, o mecanismo da negação. E esse, aliás, é um ponto bastante conflituoso e problemático da psicanálise, quando vista e analisada por pessoas que não são da área, inclusive pelos próprios analisantes, podendo dar origem aos mais variados tipos de desavenças - desde uma discordância teórica até o rompimento de uma relação analítica (entre analista e analisante).

A negação é um processo que auxilia muito o analista, na medida em que ela é o que permite que algo recalcado (rejeitado) pela consciência seja novamente admitido por ela, ainda que sob a forma da negação. Uma pessoa que, por exemplo, nalgum momento deseja algo socialmente proibido, que, por ser proibido, é rejeitado pela consciência e tornado inconsciente, poderá encontrar uma forma de readmitir esse desejo na consciência trazendo-o à tona na forma negativa: "eu odeio isso". O analista, diante dessa negação, irá subtrair o "não" implícito da frase e verá razões para apostar que ali se manifesta um desejo tornado inconsciente (Sigmund Freud, 1919/2019, p. 141)[1]. CLARO: isso deve ser considerado levando-se em conta tudo o que já se ouviu do analisante até então. Aquilo que o analista acredita que possa ser uma negação, ele deve explorar, questionar, instigar o analisante a falar sobre, sempre respeitando os seus limites. Tem coisa que você não se sente à vontade pra falar ainda! O analista precisa respeitar isso e, ao mesmo tempo, abrir espaço para que haja cada vez menos inibição da parte do analisante. Sem pressa!

E qual o valor dessa aposta na suposta negação? Bom, ela tem um valor analítico, porque vai dar corda à análise; o sujeito vai se tornando cada vez mais consciente de seus processos, passando a ter mais clareza na condução da sua vida. E essa aposta também tem um valor terapêutico em alguns casos, já que um desejo rejeitado pela consciência pode retornar na forma de sintoma, e basta lembrar que são os sintomas que, na maioria das vezes, levam as pessoas a um psicanalista. De um modo geral, quando esses sintomas são dissecados até se descobrir qual é a trama inconsciente por detrás deles, o sujeito vê aumentarem as suas chances de alívio. Mas a questão da negação é apenas um exemplo de como a atenção do analista deve estar voltada para aquilo de inconsciente que se apresenta na fala do analisante. Esse direcionamento da atenção é o que explica a sensação de não estar sendo ouvido pelo analista.

Por fim, a análise é mesmo inquietante, às vezes. Afinal, trata-se do sentimento infamiliar de se encontrar consigo mesmo. Não é massagem, não é acupuntura... é análise! 

Ah! Sim, sim! Eu diria que seu psicanalista provavelmente está te ouvindo. Na dúvida, aposte nele! Tem um trabalho muito minucioso na base de sua clínica; trabalho de análise pessoal, de estudo e de supervisão (consultoria por parte de outros analistas).


Samuel Melo é natural de Maceió. Preto, psicanalista, formado em psicologia pela Universidade Federal de Alagoas.



Referência

[1]FREUD, Sigmund. (1919/2019). O infamiliar e outros escritos / Sigmund Freud ; seguido de O homem da areia / E. T. A. Hoffmann ; tradução Ernani Chaves, Pedro Heliodoro Tavares [o homem da areia ; tradução Romero Freitas]. -- Belo Horizonte : Autêntica Editora. -- (Obras Incompletas de Sigmund Freud ; 8)

quinta-feira, 13 de agosto de 2020

Meu coroa, o Super Choque e pretitude


Como se sabe, dois eventos importantes, além da catástrofe do novo Coronavírus, se desenrolam na atualidade do Brasil: a luta mais aberta contra o racismo e o dia dos pais. O primeiro acontecimento é mais amplo e significativo do que o segundo[1], mas é de se questionar se eles são mesmo separáveis. No contexto que aqui apresento, esses dois eventos estão interligados pelo fato de se referirem à propagação/manutenção da vida, no sentido biológico e cultural. Acredito nisso porque, na nossa cultura, a palavra "pai" está em grande medida vinculada ao nascimento de alguém, biologicamente, e à manutenção dessa vida, culturalmente falando - o sustento, a pensão etc.[2], assim como a luta antirracista visa à manutenção da vida e, mais especificamente, a barrar nossa necropolítica de cada dia.   

Mas o que têm a ver "meu coroa, o Super Choque e pretitude"? Bom... meio que tudo!

Vou falar um pouco da minha experiência com essas duas figuras e tentar articular isso com essa condição de ser preto, a pretitude. A primeira figura da história é o meu pai - Adelmo Melo, um homem preto, eletricista; a segunda é o super-herói da Milestone Media DC Comics - o Super Choque, um jovem preto chamado Virgil Hawkins que adquiriu superpoderes relacionados à eletricidade de forma bem diferente da do meu pai. Bom, acho que esse é um ponto interessante pra começar a conversa: como cada um deles adquiriu os superpoderes relacionados à eletricidade. 

Ainda que meu pai não tenha aprendido a ser eletricista num acidente em sentido estrito, o fato de ele haver desenvolvido essa técnica de ganhar a vida não deixa de ser um acidente em sentido figurado. Acho que é possível pensar assim porque as oportunidades para uma pessoa de pele escura no Brasil são bastante escassas e, vale dizer, nos tempos do meu coroa eram bem piores do que hoje. Posso dizer, com isso, que Virgil e Adelmo se tornaram eletricistas por acidente e são, por isso, um ponto fora da curva, homens pretos que encontraram uma forma de sobrevivência diferente daquelas alternativas elencadas por Mano Brown pra essa galera - crime, futebol, música. Não que exista demérito em se ser jogador de futebol, cantor... acho que o leitor está entendendo o caminho do texto.  

Mesmo assim, é preciso reconhecer que aquilo que o Super Choque faz não é bem um trabalho remunerado, como ser eletricista, e que, em grande medida, ele não escapa daquela tríade apresentada por Mano Brown em suas músicas - acaba encontrando uma forma de existência simbólica através da fama, sendo, digamos, um pouco mais enérgico do que a maioria. Mas o leitor poderia me advertir que o trabalho remunerado não deixa de ser uma busca por existência simbólica e não só material. E eu seria obrigado a concordar com essa observação, porque também acredito que um ser movido pelo desejo, como o humano, jamais deixaria de enriquecer e enaltecer com diversos símbolos essa existência material, conferindo ao trabalho (e ao emprego) todo um teor de dignidade expresso, por exemplo, no dito popular "o trabalho dignifica". Isso é visível na própria experiência do meu pai, quando se identifica à profissão ao ponto de dizer que vai "morrer trabalhando", não por necessidade, mas por desejo.

Tornar-se eletricista foi, aliás, o que aproximou o meu velho do desejo, no sentido estrito de sua realização, sendo "desejo" o oposto de "necessidade" justamente por unir duas "fomes" - a fome de comida e a de reconhecimento simbólico, e provocar, com isso, um movimento em direção à "realização", a qual penso como sendo qualquer efeito desse equilíbrio de "fomes" no campo da ação. Ser eletricista proporcionou ao meu pai, além de uma maior remuneração, a liberdade da autonomia, o famoso "trabalhar para mim mesmo" que se opõe à condição, também famosa em Alagoas, de "meia sola", aquele "trabalhador precário, o sujeito que precisa realizar serviços [...] pesados, sazonais e que são remunerados abaixo das necessidades de consumo de sua família" (Charles dos Santos, 2019)[3], aquele "trabalhador de moagem", que trabalha na usina de açúcar e álcool durante seis meses do ano e fica desempregado durante o outro semestre. Lembro quando, em Teotônio Vilela/AL, os números dos assaltos e invasões a residências para furto aumentavam exponencialmente nesse semestre de entressafra, quando muitos "meia sola" recorriam à primeira opção apresentada por Mano Brown - o crime. Meu pai, como a maioria dos homens pretos, passou muito tempo sendo um "meia sola" em diversas cidades do estado e também fora dele e, assim como o Super Choque, precisou ser um tanto mais enérgico do que a maioria para poder se tornar eletricista, coisa que não é assim tão necessária com relação às pessoas brancas, que já contam com todo um histórico de privilégios e facilidades. É evidente que há, no Brasil, muitos brancos pobres e que enfrentam muitas dificuldades de sobrevivência. Mas existe um acréscimo de dificuldade significativo na experiência de um brasileiro preto, que tem de enfrentar os múltiplos efeitos do racismo. E isso é ainda mais verdadeiro na experiência de pretos retintos, aqueles de pele mais escura em relação aos chamados pardos.

Além de ser fruto de pensamento, essa aproximação das duas personagens (o Super Choque e o meu pai) não se deu na minha cabeça de forma forçada pela reflexão. Ela aconteceu na minha experiência mesma. O início da carreira do meu velho como eletricista e as primeiras transmissões de Super Choque às quais tive acesso aconteceram, mais ou menos, ao mesmo tempo. Lembro que, na escola, alguns colegas me irritavam comparando meu pai ao Super Choque, sabendo de sua profissão - aliás, esse era o nome do meu pai na minha escola, Super Choque. Hoje posso concordar com esses pequenos bullies. A semelhança é clara - dois homens pretos e eletricistas. Os dois falam muito sobre representatividade preta, sobre as condições para se obter uma profissão reconhecida, razoavelmente remunerada; remunerada com dinheiro ou com dinheiro e existência simbólica. 

Aliás, o "nome de trabalho" que meu pai adquiriu ao longo de 20 anos de "eletricismo" me parece dizer muito sobre o quanto de energia uma pessoa preta necessita invocar e investir para se tornar "alguém", um profissional reconhecido. Mejor ("Melhor", em espanhol), é assim que meu pai se tornou conhecido na sua cidade, Maragogi, entre os gringos a quem prestava e presta serviço. Nesse ponto eu recordo da fala introdutória da música "A vida é desafio", do álbum "1000 Trutas 1000 Tretas", de Racionais MC's (2006), com a qual podemos finalizar o post

"Tem que acreditar! Desde cedo a mãe da gente fala assim: 'filho, por você ser preto, você tem que ser duas vezes melhor'. Aí 'passado' alguns anos eu pensei: 'como fazer duas vezes melhor, se você tá pelo menos cem vezes atrasado... pela escravidão, pela história, pelo preconceito, pelos 'trauma', pelas 'psicose', por tudo que aconteceu? Duas vezes melhor como? Ou melhora, ou 'cê' é o pior ou é o melhor de uma vez. Sempre foi assim! Se você vai escolher o que tiver mais perto de você, o que tiver dentro da sua realidade... você vai ser duas vezes melhor como? Quem inventou isso aí, quem foi o pilantra que inventou isso aí? Acorda pra vida, rapaz!'"        

Samuel Melo é natural de Maceió, preto, psicanalista, formado em psicologia pela Universidade Federal de Alagoas, filho de José Adelmo da Silva de Melo e Maria Helena da Silva.

Feliz agosto, coroa!


Referência e notas

[1] Porque abrange diversos temas, inclusive o da paternidade.

[2] Essa função cultural da paternidade, aliás, se tornou tema de discussão muito recentemente, quando a Natura decidiu colocar Thammy Miranda, um homem trans, como símbolo de sua campanha do dia dos pais. Nem preciso falar o que surgiu em seguida, embora me sinta forçado a criticar até mesmo alguns argumentos favoráveis ao Thammy, porque neles, acredito, a legitimidade da paternidade de um homem trans aparece como dependente de uma "boa atuação paterna" (seja lá o que isso signifique) ou, pior ainda, ela aparece como uma alternativa à "má atuação paterna" dos homens cis. Isso ficou claro pra mim nos argumentos do tipo: "ah, mas muitos homens cis não cumprem sua função de pai!" Penso que um homem trans pode ser pai independente da "qualidade" da paternidade que exerça. Em outras palavras, ele não tem maior ou menor dever de ser um "bom" pai do que um homem cis. Acho que o reconhecimento verdadeiro de um direito deve ser capaz de não reproduzir preconceitos do tipo "já que - pelo menos" ("'já que' é trans, 'pelo menos' seja um 'bom pai'"). Espero que superemos isso um dia!

[3] SANTOS, Charles dos; et al. (2019). Terra, trabalho e lutas sociais na agroindústria canavieira alagoana. Cícero Ferreira de Albuquerque; José Rodolfo Tenório Lima; Lúcio Vasconcelos de Verçoza (Orgs.). Maceió: Edufal.

quinta-feira, 18 de junho de 2020

Ouvir a fala, agir sobre o discurso - Coluna Saúde-se

Na psicanálise, a fala tem um lugar central. Sem ela, é impossível dar início e continuidade a esse trabalho rumo a uma vida com menos sofrimento. Junto à fala, estão as condições e proibições que ditam o ritmo de sua articulação - as regras, os tabus etc. Nenhum de nós pode sair por aí falando o que quer, ainda que alguns sujeitos acreditem nessa absoluta "liberdade de expressão" que a cadeia e a reprovação social contestam devastadoramente. O ponto central ao redor do qual pretendo caminhar, no entanto, tal como se faz com um moinho de farinha, é a existência mesma dessa estrutura que se impõe como condição à emergência da fala, isto é, o que chamamos, com Michel Foucault, de "discurso". O discurso, no sentido filosófico foucaultiano, é entendido como uma voz sem nome que antecede a fala, cuja materialidade é bastante real e mesmo assustadora (Michel Foucault, 1970/1999)[1].

Quando se fala em racismo estrutural, por exemplo, é à estrutura racista e escravocrata da República brasileira que se referem os denunciantes. Ou seja, o que está em jogo aí não é a intenção individual de cada cidadão, de cada policial militar, mas o comportamento já quase automático que um dia foi assumidamente racista e, com o tempo, à medida que houve uma aparente reflexão a respeito da escravidão e da segregação racial, passou a ser desautorizado de algum modo. Parece, no entanto, que no Brasil essa "consciência negra" surgiu apenas como uma resposta à pressão internacional pelo fim da escravidão, assim como, até 2016, o país mostrava certa "preocupação" com as questões ambientais, o que, na prática, não passa, até hoje, de uma resposta às exigências europeias dos famosos "celos de sustentabilidade", os ISO's "da vida", impostos por muitos países como condição a qualquer negociação industrial. Em suma, houve e há no nosso país, quanto ao racismo e quanto à sustentabilidade, uma demagogia marcada pela modificação das palavras sem uma mudança real na estrutura escravocrata, racista e ambientalmente insustentável. Podemos, então, dizer que, no que se refere à escravidão e à sustentabilidade ambiental, o Brasil é um carro popular com fantasia esportiva - uma lataria esquisita que guarda um motor incapaz de transpor o menor dos alagamentos. 

Dito isso, que quando falamos em "discurso", aqui, nos referimos à estrutura que, em grande medida, dirige os comportamentos das pessoas, fazendo-as agir automaticamente, sem pensar, podemos agora entrar mais diretamente no tema da psicanálise, o que o título do post promete. Vamos lá!

Adentrar na seara da psicanálise e, mais especificamente, na seara da psicanálise lacaniana requer alguns reposicionamentos quanto ao discurso. Isso porque me parece que a ideia de discurso em Foucault, apesar de ser fonte importante para a psicanálise para se pensar política e sociedade, limita-se ao campo jurídico e trata das relações de poder implicadas na existência de um "sujeito do direito", ou seja, o que se convencionou chamar, com razão, de "indivíduo" - o portador de um CPF, de um RG, de uma CNH.     

Em Lacan a pegada é outra! No Seminário 17 (Jacques-Lacan, 1991/1992)[2], o psicanalista trata dos quatro discursos que atravessam o sujeito: o discurso do mestre, o discurso histérico, o discurso universitário e o discurso do analista. Discurso, aqui, vale pontuar novamente, é essa estrutura, essa "rede de saber", ou seja, um conjunto de regras, preceitos e direcionamentos implícitos que dirigem a ação de um cidadão, de um profissional, de um sujeito. Assim como podemos falar em um "discurso racista", podemos falar de qualquer discurso, que é guiado por uma "verdade" (que pode muito bem ser uma mentira no que concerne aos fatos), e aqui o discurso se assemelha a uma "moral", a uma "ética" qualquer que, como sabemos, variam de acordo com cada cultura e até de família para família.

Nos deteremos no "discurso do analista". O leitor lembra de quando falamos, lá no primeiro parágrafo, que o discurso é essa "condição" para a fala? Ou seja, ele é o que antecede a fala, impondo-lhe as suas condições para surgir. É por isso que ninguém pode falar o que quiser sem ter de responder por isso e sem ter uma ética, uma moral, que sustente sua fala. Bom, o discurso do analista é uma variante bastante distinta de discurso - ele também impõe condições, mas condições que, por exemplo, impulsionam o sujeito muito mais a falar do que a calar-se, muito mais a "faltar" do que a "completar-se", visto que está, justamente, na falta a potência - se não sei, buscarei saber e descobrirei; se não tenho, buscarei e passarei a ter (seja lá o que for).

Antonio Quinet (2009)[3] observa como cada sessão de análise deve obedecer a uma  política da falta e, nessa condição, como o analista constrói toda uma tática no momento da sessão, visando à garantia de que ele próprio ocupe e não deixe de ocupar o lugar de analista e que o analisante se mantenha na direção da análise, não desviando-se para outros caminhos analiticamente improdutivos. Em outras palavras, há certo esforço para que, na análise, se estabeleça uma relação "analista-analisante" e não qualquer relação de poder ou jogo de forças. É por isso que o Quinet pontua como o analista deve esquivar-se do "poder" que a própria transferência lhe confere. Noutras palavras, o discurso do analista visa à localização do poder no seu devido lugar - no significante (S2), na fala do analisante, esse "sujeito-suposto-saber".

Foucault e Lacan parecem, nalguma medida, tratar de um mesmo problema - o discurso, essa estrutura que antecede e condiciona a fala e o comportamento. Me parece, no entanto, que a diferença fundamental das suas obras concerne ao seu foco - o campo jurídico, no caso de Foucault; o campo clínico, no caso de Lacan. E, além disso, parece que, pela própria natureza de sua investigação, Lacan foi mais adiante do que Foucault no estudo do discurso, transpondo o âmbito do "sujeito do direito" para o do "sujeito de direito", esse sujeito que é atravessado não somente pelas forças e poderes jurídico-políticos, mas que sofre a influência irresistível da linguagem e do inconsciente (que é estruturado como uma linguagem).

Aplicação e implicação disso nas sessões


Um sujeito pode falar sorrindo enquanto "chora por dentro". É a esse "chorar por dentro" que o analista deve responder e é sobre ele que deve agir. Significa dizer que "ir na onda" do afeto momentâneo impresso pelo sujeito, por exemplo, numa frase impedirá o analista de ser analista e poderá causar mal-estar na sua relação de trabalho com o analisante, porque, dentre outras implicações técnicas, pode ser que fique a impressão, por parte deste último, de que sua fala não foi adequadamente ouvida, seja pela aparente desatenção do analista ou porque ele, supostamente, não conheça a história do sujeito, "mesmo depois de eu falar tanto sobre mim". Essas impressões podem ser conscientes ou inconscientes e têm, igualmente, consequências negativas sobre a continuidade da análise.

Esse mal-estar aparece frequentemente, nas relações interpessoais de qualquer um, no clássico "climão" que é causado quando concordamos, por exemplo, com alguém que diz que está "feio" ou "mal vestido". Ao dizer que está "feia", uma pessoa frequentemente busca ouvir de seu interlocutor uma resposta contrária a essa afirmação. Quando essa pessoa que lhe ouve concorda com isso que ela disse, ao invés de discordar e a elogiar, se instala o "climão". Vale dizer que esse exemplo nos serve apenas para ilustrar como o discurso está presente na fala do dia-a-dia e não significa que, na sessão de análise, o analista deva trabalhar no sentido de alimentar quaisquer fantasias de seu ou sua analisante. Muito pelo contrário, mesmo porque seu compromisso é com a garantia de que o analisante fale e esse direcionamento guarda consigo certo mal-estar (ver post "O psicanalista e o 'emoji' do coração"), mas esse é um mal-estar que visa a um "bem-ser"[4], que, por sua vez, é diferente de um "bem-estar".

Disso resulta que é a partir da leitura clínica geral do caso do sujeito que o psicanalista deve ouvir e agir sobre o que ele fala. Nas sessões, o analista deve estar atento àquilo que dura, que se repete; e isso deve receber maior atenção do que aquilo que é efêmero, que surge num momento e depois não aparece mais. Vale observar, nesse ponto, que nem sempre as repetições aparecem na forma de fala articulada. Muitas vezes, é um comportamento, por exemplo, que se repete, podendo reproduzir cenas traumáticas ou marcantes da infância, as quais precisam ser exploradas. As repetições dizem algo do que condiciona e possibilita a emergência da fala e do comportamento. Seguir a trilha dessas repetições aproxima o analista de descobrir qual é o discurso que guia a vida do analisante.

Pode-se dizer que numa frase dita ou escrita a um analista receberá dele maior atenção o que está nas suas entrelinhas. As vírgulas, os pontos, os elementos sintáticos de uma frase e que ditam o ritmo de sua expressão (se será uma leitura "corrida", lenta, com pausas), é isso o que captura a atenção equiflutuante do analista, que nem por isso ignora qualquer palavra que componha a frase. É nisso e noutras coisas que ele, o psicanalista, não é assim tão diferente do restante da população, não é assim tão esquisito, tão estranho. Isso porque, na verdade, no cotidiano, o que, até certo ponto, movimenta nossos afetos é a "forma" como dizemos e ouvimos as frases. É absolutamente conhecida do leitor a popularidade da expressão: "não fiquei brava pelo que ela falou, mas pelo jeito como falou". Do mesmo modo, os insultos são comuns, por exemplo, entre alguns grupos de amigos, e carregam consigo, muitas vezes, significados que apontam para a aceitação grupal do insultado - ser insultado, nesse contexto específico, significa que, de algum modo, se é conhecido e reconhecido. Ademais, lembremos dos trotes nas universidades, por exemplo, onde os calouros são, algumas vezes, expostos ao ridículo, pintados, molhados, derrubados ao chão, tudo isso aos risos e gargalhadas e tendo como pano de fundo o fato de terem sido aprovados num vestibular e estarem sendo recepcionados e iniciados na vida acadêmica pelos veteranos[5]. Diante disso, podemos dizer que o cidadão comum, que não é psicanalista, considera o ponto de vista do discurso quando analisa as frases e acontecimentos do dia-a-dia. O discurso é esse "pano de fundo".

O que torna o psicanalista um pouco esquisito, se comparado ao resto da população, é que ele, por exemplo, ao estudar sobre os neurônios, se interessará, sobretudo, pelas sinapses, pelo entremeio, por aquilo que se movimenta "pelos meios" e que é o meio pelo qual acontecem as trocas informacionais (quase informáticas!) no interior de cada massa encefálica. A posição desse profissional é essa porque o sujeito do inconsciente, qualquer pessoa que está inserida na linguagem, que fala e que ouve (e se não ouve ou fala, expressa a linguagem por outras vias), qualquer sujeito está entre um significante e outro, está rachado, dividido (à exceção de alguns casos clínicos específicos). O cálculo neurótico, o que orienta a escritura de seu "romance pessoal", é, na maioria dos momentos, marcada pelo ponto de interrogação: o que quero? quem sou? 

É por isso que a posição "de meio", "no meio", "para o meio" é tão necessária ao trabalho do psicanalista. Em grande medida, para se seguir e estudar os destinos do inconsciente e suas formações, é necessário entrar numa embarcação que esteja apta a seguir sua corrente. Penso que essa embarcação é, nalguma medida, a escuta técnica tal como foi apresentada até aqui. 

O profissional da psicanálise precisa interpretar o que se fala e o que permanece no silêncio, esse discurso que diz alguma coisa, mesmo sem falar.


Samuel Melo é natural de Maceió, preto, psicanalista, formado em psicologia pela Universidade Federal de Alagoas.

Este artigo contou com a colaboração técnica do meu amigo André Guedes (Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano em Maceió), embora o que aqui se diz não reflita necessariamente o seu ponto de vista.

Currículo: http://lattes.cnpq.br/3326945607744321



Referências e notas


[1] FOUCAULT, Michel. (1970/1999). A ordem do discurso. Tradução: Laura Fraga de Almeida Sampaio. São Paulo, SP: Edições Loyola.

[2] LACAN, Jacques. (1991/1992). O seminário, Livro 17: o avesso da psicanáliseRio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar Ed.  

[3] QUINET, Antonio. (2009). A estranheza da psicanálise. Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar Ed.

[4] Esse ser guiado pela reflexão, que, por isso mesmo, sofre menos do que sofreria se não fizesse análise. Não significa que eu acredite haver alguma "completude" nesse ser, mesmo porque é a "falta-a-ser" o que direciona o pensamento psicanalítico lacaniano. "Bem-ser", aqui, vem pra significar um "bem-estar" que não abre mão do "mal-estar" de ter de falar sobre e responder pelas coisas mais difíceis durante a análise.

[5] Evidente que não podemos naturalizar os exageros igualmente conhecidos no que toca aos trotes. Tudo tem limite!

quarta-feira, 10 de junho de 2020

Saliva, fala, Coronavírus e inconsciente - Coluna Saúde-se

É do conhecimento da maioria de nós que o Coronavírus, assim como outros tipos de vírus, pode ser expelido do corpo da pessoa infectada através da sua saliva ou, melhor dizendo, através das gotículas salivares inevitavelmente projetadas ao ar quando se articula a fala. O resultado dessa projeção é a possibilidade de infectar outras pessoas que tenham contato com o fluido corporal.

Em tempos de pandemia, alguém que tenha conhecimento disso tomará cuidado ao entrar em contato com alguém que se põe a falar sem o uso de máscara. O Coronavírus é um risco invisível que, apesar disso, pode ser percebido por alguém que tenha atentado para as recomendações dos órgãos mundiais e locais de saúde.
Há uma semelhança curiosa entre o Coronavírus e o inconsciente: ambos nos afetam pela via oral, da fala. Ainda que haja outras maneiras de se infectar com o vírus e também outras maneiras de falar e ser entendido, privilegio aqui a via oral porque é o que vem a calhar nesta discussão.

Não é nada difícil ser infectado ou infectar alguém com o Sars-CoV-2. Do mesmo modo, é inevitável não afetar e ser afetado pelos processos inconscientes através da fala e dos efeitos da fala. Na verdade, não é necessária nenhuma sessão de exorcismo para se ver e ouvir o inconsciente em ação. 

Certo dia recebi o seguinte questionamento: - "E se a pessoa chegar ao consultório e não falar nada, como você vai fazer pra atendê-la?"

Eu respondi que o fato de não falar nada diz, contudo, alguma coisa. Jacques Lacan (1953/1998)[1] já havia nos dado indicações de que um gesto, um olhar, um ato qualquer, mesmo o silêncio, deve ser observado pelo psicanalista como ponto de abertura para análise, assim como qualquer fala ou movimento do analista é interpretado pelo analisante. Nas palavras do mestre: "[...] a fala, mesmo no extremo de sua usura, guarda seu valor de téssera[2] [...] mesmo se não comunica nada, o discurso representa a existência da comunicação" (Jacques Lacan, 1953/1998, p. 253). Para exemplificar isso que aqui, talvez, seja difícil para o leitor entender, imagine a leitura que cada um de nós faz hoje ao ver uma pessoa na rua sem máscara. O não uso da máscara levanta questões sobre o porquê daquilo: pode ser uma pessoa negligente, egoísta, desinformada, desobediente à lei etc. Da mesma forma, alguém que chega ao consultório de um analista e permanece em silêncio deixa "atrás de si" rastros de fala: mesmo em silêncio, ela está ali, diante do analista, um profissional a quem procuramos justamente para falar e com quem ela, provavelmente, falou antes por telefone, WhatsApp, e-mail etc. para marcar a sessão. Além disso, justamente por esse silêncio ser, de antemão, algo inesperado, uma vez que alguém que vai a um psicanalista vai lá justamente pra falar, o seu silêncio é gritante o suficiente para ser questionado pelo analista e se tornar tema de "conversa" ou, melhor dizendo, material para as entrevistas preliminares, por exemplo. Entretanto, o leitor não deve interpretar isso que acabei de falar como algo do tipo Lie to me. A psicanálise jamais abre mão da fala (que pode também ser articulada através de línguas de sinais, como a LIBRAS) nas suas interpretações. Assim, a análise de um gesto, de um silêncio, só fará sentido quando ancorada na fala do sujeito.

Nas sessões de psicanálise há sempre coleta de saliva, se o leitor me permite introduzir um trocadilho. E é curioso como essa coleta, no âmbito médico, é feita com o paciente em silêncio. Isso também pode acontecer na análise!

Tudo o que está dito antes da fala: o silêncio, a presença no consultório, o atraso, o chegar adiantado... diz respeito, em parte, à natureza transpessoal do inconsciente - é o discurso de um outro que leva alguém ao analista, seja o Conselho de Psicologia que lhe chama a atenção com um outdoor, seja a narração da experiência analítica de um colega ou parente... O inconsciente está impregnado no sujeito, na cultura, no divã/poltrona do analista ou na intimidade de um quarto. 

O inconsciente é mais contagioso que a Covid-19, pois sua pandemia não passará algum dia e sua afecção demanda um duradouro "tratamento", um engajamento analítico que não equivale a 14 dias de isolamento em casa. Pelo contrário, exige a visita, pelo menos semanal, ao consultório do analista, seja isso feito presencialmente ou de forma virtual. 

Uma diferença importante entre o vírus e o inconsciente é que o conhecimento da existência desse primeiro deve nos levar a evitá-lo, a fugir dele,  como recomendam os especialistas. No caso do inconsciente, ao contrário, quanto mais tomamos conhecimento de como ele nos afeta e nos constitui, mais devemos conhecê-lo. É isso o que recomendam os especialistas. Psicanálise é uma questão de saúde pública!


Samuel Melo é natural de Maceió, preto, psicanalista, formado em psicologia pela Universidade Federal de Alagoas.

Currículo: http://lattes.cnpq.br/3326945607744321

Referência e nota

[1] LACAN, Jacques. (1953/1998). Escritos. Rio de Janeiro: Zahar.

[2] Espécie de ficha, inscrição metálica utilizada na Roma Antiga cuja função era comunicar algo, fosse um evento, uma identificação em forma de senha etc.

sexta-feira, 15 de maio de 2020

O psicanalista e o "emoji" do coração - Coluna Saúde-se


Todo psicanalista certamente já viu algum de seus analisantes chegar ao seu consultório e dizer, de uma forma ou de outra: "você é um amor de pessoa!" Alguns deles, mais expressivos, podem até mesmo fazer aquele famoso sinal do coração com as mãos. Evidente que isso se torna um momento de descontração e fala algo da relação transferencial da/o analisante com o/a analista. Ponto pra a/o colega! Encontrar alguém que te escute e te incentive a contar a tua história, mostrando interesse por ela, é algo que não se consegue em qualquer lugar. Por isso as pessoas procuram o divã. Ponto para os nossos analistas!

Só que nem sempre é esse o ânimo do sujeito que se coloca em análise. A causa? O mesmo "coraçãozinho"; ou, mais precisamente, o S2. A letra "esse" colada ao número "dois" causa a ligeira impressão do desenho de um coração. Principalmente há alguns anos atrás, esse era um símbolo bastante utilizado nos "SMS", nos "posts" do "Orkut" e até mesmo do "Facebook". Com o tempo, ele foi substituído por formas prontas, os famosos "emojis". Coincidentemente, S2 é o sinal utilizado por Jacques Lacan para designar, trocando em miúdos, o "desfile da palavra", como diria Joël Dor, ou seja, o que seria a emergência da fala numa sessão de análise, quando a/o analisante se permite falar, surpreendendo-se frequentemente com o que fala. 

Diferentemente do "emoji" ou do sinal de coração, para a psicanálise o S2 significa uma necessidade de garantir que o analisante fale, com o mínimo de controle e de pudor. Assim, é dever do analista se colocar como S2, ou seja, como garantidor da fala, interrompida somente se estritamente necessário. Como se sabe, nem sempre  aquilo que o/a analisante fala e a/o analista lhe devolve, geralmente na forma de uma questão, lhe agrada. É aqui onde S2 não é "coraçãozinho", nem dito, nem gesticulado, tampouco escrito. S2, na psicanálise, é falar (enquanto analisante) e dar condições para a fala (enquanto analista); esse "falar" deve sempre partir de uma posição de questionamento, jogando uma palavra, uma frase como propulsora da próxima. Esse é o papel da/o analista na maioria do tempo de sessão. É aqui onde ganham espaço as maiores ambivalências - ao passo que o/a analisante experimenta um certo bem-estar, por poder falar "o que vier à cabeça", ele, frequentemente, ouve (ou vê) do analista um questionamento que põe em dúvida toda aquela certeza que a sua fala carrega, muitas vezes fruto de muita reflexão fora do consultório. "Poxa! Mas eu tinha certeza que o meu problema era devido a isso, e esse cara vem agora colocar em dúvida essa minha certeza?!" 

É aí que S2 não significa "amorzinho", "legalzinho" e sim "estraga prazeres" ou algo como :/ ou :|
É dever do analista ser um pouco "estraga prazeres", localizar para o analisante os pontos "furados" de sua fala, as inconsistências, contradições, a fim de possibilitar a continuidade do caminho de reflexão que este último necessita seguir para poder construir um sentido para sua experiência de vida, um sentido capaz de proporcionar que ele colha dessa experiência o bem-estar, o fruir e o gozar da vida, como ambicionou aos seus analisantes um dia Sigmund Freud. Mas esse bem-estar só é possível pelo caminho do que Jacques-Alain Miller chamou de "bem-dizer", que nem sempre é "bendizer", o S2.

Samuel Melo é natural de Maceió, preto, psicanalista, formado em psicologia pela Universidade Federal de Alagoas.

Currículo: http://lattes.cnpq.br/3326945607744321

sábado, 9 de maio de 2020

O homem que se chama "picolé" - Coluna Polis & Cia

Nessa última semana vivi uma experiência que me fez refletir bastante. Na verdade, eu já havia visto algo parecido e, já há algum tempo, vinha pensando a respeito desse assunto. Tanto que ele chegou a figurar entre as minhas opções de temas para meu TCC, há alguns meses atrás.

Vamos lá... Eu estava numa fila gigantesca para entrar num supermercado em Maceió. A entrada ao estabelecimento estava sendo rigorosamente controlada, principalmente por conta do novo decreto do governador de Alagoas, Renan Filho, que impôs condições mais ou menos rígidas para a circulação de pessoas nos poucos estabelecimentos comerciais autorizados a manterem as portas abertas durante esse terrível tempo de pandemia que nos assola.

- Ei! Ô, picolé! Picolé! - Gritou uma senhora a um vendedor de picolés que passava por entre aquele corredor de gente.

- Ô, picolé! Ele não tá ouvindo! - Gritou e comentou em seguida, rindo-se, outro senhor ali enfileirado.

Achei a situação curiosa porque o vendedor chegou a olhar para o senhor que o chamou, mas voltou ao seu caminho logo em seguida, dando as costas para aqueles que o chamavam.

- Ele, provavelmente, achou que não era ele a quem chamavam! - Pensei.

Cerca de dois ou três minutos depois, o vendedor voltou, passando novamente por entre aquela fila.

- O senhor não ouviu "não" "eu" chamando? - Perguntou-lhe o senhor que o chamara.

- Se chamar de "picolé" eu não venho mesmo não! Eu tenho nome. Tem que chamar o ser humano pelo nome! - Respondeu o vendedor, retirando-se em seguida, enfurecido.

- Oxe! - Surgiram alguns sussurros, seguidos de risos.

- Picolé! Ô, picolé! - Passou a gritar um outro homem, em tom de deboche.

- Cara doido da p****! - Continuou, meneando a cabeça, em tom de reprovação à atitude do vendedor.

O "oxe" que surgiu tanto na fala quanto nas expressões de algumas pessoas presentes nos diz mais do que um "oxe". Ele surge nessa ocasião como significando surpresa diante de um comportamento inesperado e "inadequado" por parte de um vendedor, que "deveria", como todos sabemos e reivindicamos, "ser gentil e amável" para com seus potenciais clientes, quase que um robô, sem afeto, sem sentimentos, sem nome próprio. Naquele momento eu lembrei de outro robô sem nome lá do centro da cidade, o "tapioca", que, diferentemente do "picolé", parece orgulhar-se dessa marca que faz aí o papel de um pronome, por substituir-lhe o nome próprio, que, inclusive, não conheço.

Essa correspondência automática entre nome e função social, ou, melhor dizendo, essa substituição do nome próprio pela função social, a de "vendedor de picolé" ou de "tapioca", aparece no caso do "picolé" claramente como um ponto de conflito e, portanto, de sofrimento para ele. Sofrimento porque justamente ele, o sofrimento, "determina-se pela narrativa e pelo discurso nos quais se inclui ou dos quais se exclui [...] [já que] há um trabalho social da linguagem que se cruza na determinação do sofrimento" (Christian Dunker, 2015, p. 25). Os porquês daquele vendedor se irritar por lhe chamarem, não por seu nome, mas por sua função, ou pior, pelo produto que oferece, não são sondáveis assim, numa observação distante, nem tampouco conhecê-los e expô-los seria conveniente. Somente ouvindo-o sob as condições adequadas de análise é que se poderia captar de modo aproximado o sentido desse sofrimento que se faz ouvir através da sua indignação. Posso dizer, no entanto, com certeza, que há algo de coletivo, sim, nesse "processo", não de identificação necessariamente do ponto de vista do sujeito nomeado (ou "desnomeado"), mas de identificação do ponto de vista dos outros.

Vamos lá... essa correspondência entre nome e função social é algo característico do nosso país e é resultado, posso dizer, da chegada dos colonizadores à nossa terra firme. Anne Araujo (2007) nos mostra como somos vistos (e nomeados) do ponto de vista do colonizador, isto é, como "vassalos úteis", "brasileiros", ou seja, aqueles que trabalham o/com o pau-brasil, tal como "caminhoneiro" é aquele que trabalha dirigindo caminhões e "pipoqueiro", na língua alagoana usual, é aquele hábil senhor que vende "pipocas". Assustador, né, minha filha? Diria o dr. Dráuzio Varella. Esclarecedor, né, minha filha? Digo eu.

Entre "eiros", "eiras" e "beiras", o leitor poderá questionar: mas já se foi o tempo de colônia, assim como os colonizadores! Só que o processo de identificação ou, melhor dizendo, o "processo de etiquetagem" continua em nosso Brasil varonil, mais vermelho do que verde e amarelo (pau-brasil = vermelho, o leitor entendeu!). Dando um salto no tempo para o período pós-colonial e citando Nicos Poulantzas, Michel Pêcheux (1995) explica como o olhar do senhor de escravos que se tornou dono de indústrias é reproduzido pelos proletários ou empregados: "As relações humanas naturais fundadas em uma hierarquia de subordinação econômico-social dos produtores [...] são substituídas pelas relações ‘sociais’ de indivíduos automatizados, situados no processo de troca" (p. 73). É nesse ponto que o produto faz nome! "Você vale o que tem, vale o que tem, na mão, na mão!", cantam os Racionais MC's na música "Um por amor, dois por dinheiro" (2002). Em sentido um pouco diferente do da música, podemos dizer que, no Brasil industrializado, "você é aquilo que você tem na mão", nesse caso, aquele homem tinha o picolé na mão, logo o é. Sua indignação ali naquela fila diz algo sobre um processo identificatório ao qual resiste; esse que corresponde ao imperativo "trabalho, logo o que produzo existe". Nessas condições, para existir, ele precisa estar ligado a esse produto, o "picolé". É forçado pelo olhar dos outros ali daquela fila a derreter-se e se misturar ao picolé que vende, tornando-se ele e o picolé um só, um todo dilacerado. Eu apostaria que todos ali naquela fila projetaram naquele vendedor o olhar centenário da elite exploradora, aquele olhar que vê o pobre como "carvão e lenha pra queimar", como diria Darcy Ribeiro.

Por outro lado, parece que o dono da marca de picolés e sorvetes de iogurte que esse senhor vende não precisa recorrer a uma identificação simbiótica com o produto que produz, porque o dinheiro que ele ganha com a venda desses produtos lhe dá acesso aos bens materiais, os quais o fazem existir, ter um nome, um CNPJ. Mesmo assim, acredito que seja difícil para esse empresário ser identificado apenas pelo seu nome próprio. Provavelmente, quando ele estacionar no supermercado onde estávamos, qualquer um de nós se referirá a ele como "o cara da Frontier preta", por exemplo, nos referindo a seu carro.

Mesmo o senhor dono de indústria passa por essa fileira de etiquetagem, embora, provavelmente, sofra menos do que o "picolé", uma vez que tem acesso a quantos picolés queira... da posição de senhor, não de vendedor. Ele deve sofrer menos, também, porque, mesmo sendo "o cara da Frontier preta", ainda assim ele é "um cara". Também, por ser reduzido a uma Frontier preta, provavelmente ele não ouvirá "desaforos" ou será motivo de chacota numa fila de supermercado. Uma Frontier preta não é o mesmo que um carrinho de picolé!



Samuel Melo é natural de Maceió, preto, psicanalista, formado em psicologia pela Universidade Federal de Alagoas.



Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/3326945607744321


Referências

ARAUJO, Anne Francialy da Costa. Língua e identidade: reflexões discursivas a partir do Diretório dos Índios. Maceió: Edufal, 2007.


DUNKER, Christian Ingo Lenz Dunker. Mal-estar, sofrimento e sintoma: uma psicopatologia do Brasil entre muros. São Paulo: Boitempo, 2015.

PÊCHEUX, Michel. Semântica e Discurso - uma crítica à afirmação do óbvio. Campinas: Editora da Unicamp, 1995.

quarta-feira, 29 de abril de 2020

E se os fabricantes caseiros de máscaras e sabão salvarem o país da crise? Coluna "E se..."

A pandemia do novo Coronavírus da Síndrome Respiratória Aguda, Sars-Cov-2, na sigla em inglês, causador da "doença do Coronavírus 2019", Covid-19, também na sigla inglesa, criou um novo tipo de empreendedor, pelo menos no Brasil: as/os fabricantes caseira/os de máscaras em tecido, equipamento importante para a contenção do surto desse vírus, como alguns estudos nacionais e internacionais têm referenciado [1]. Como sempre, diante das dificuldades, surgiram aqueles que têm o talento de somar criatividade + rentabilidade + utilidade pública.

Que essas pessoas são talentosas todos sabemos. Mas e se os governos (municipais, estaduais, distrital e federal), articulados, investissem nesses empreendedores?

Bom, se isso acontecesse, acredito que teríamos, nós, os brasileiros, um ganho, pelo menos, triplo: 1) aumento da distribuição de máscaras para a população, já que a tia (ou tio) do "ap" e "da casa ao lado" teria máscaras à venda, dispensando a necessidade de o vizinho pegar ônibus pra ir comprar o Equipamento de Proteção Individual que, na verdade, acaba trazendo um benefício coletivo à medida que diminui a transmissibilidade do vírus; 2) aumento da renda desses empreendedores, gerando circulação desse dinheiro no país e; 3) diminuição da necessidade de compra de máscaras do exterior, o que custa mais caro e é mais demorado.

Outra ideia talvez seja exequível no contexto dessa pandemia: e se os mesmos governos investissem na produção e distribuição caseira de sabão nas comunidades mais pobres? Ora, aqui também surgem outra/os empreendedora/os: as pessoas que, a partir do "óleo de cozinha" residual, aquele que já foi utilizado em frituras, produzem sabão, importante agente de desinfecção do Coronavírus. Os governos uniriam esforços para entregar luvas, máscaras (estas, inclusive, talvez compradas das "tias" e "tios" costureira/os de quem já falei), "soda cáustica" e óleo de cozinha (coletado das residências, talvez até comprados dessas residências). Os benefícios disso? Bem, podemos "dar um Ctrl + C, Ctrl + V" do que dissemos acima sobre as máscaras.

Lembro-me de quando, em 2012, ainda no ensino médio, alguns colegas, professores [2] e eu pensamos e construímos um projeto de coleta de óleos residuais para produção de sabão na cidade de Teotônio Vilela, na Zona da Mata alagoana. Era o projeto "Acrol", uma cooperativa cujas criação e funcionamento se mostraram possíveis, embora, da minha parte, pelo advento das demandas acadêmicas da universidade e mudança para a capital, acabou não saindo do papel.


É evidente que as ideias tratadas acima não "salvariam" o país das atuais crises, mas, na minha percepção, sanariam uma parte importante dos atuais problemas que nós, e sobretudo os mais pobres, enfrentamos. Trata-se, portanto, mais de ideias a serem consideradas, estudadas e, por fim, adotadas ou não.

Pense: e se cada um dos cerca de 200 milhões de brasileiros tiver duas ideias a oferecer ao governo para combater a Covid-19 de forma integrada e econômica, quantas ideias teremos à mesa? Quantos empregos e atividades rentáveis vamos gerar/incentivar? Faça as contas!

- Samuel Melo é natural de Maceió, preto, psicanalista, formado em psicologia pela Universidade Federal de Alagoas.

Currículo: http://lattes.cnpq.br/3326945607744321


Referência e nota


[1] http://covid19br.org/relatorios/nota-tecnica-04-uso-de-mascaras-de-tecido-em-locais-publicos-frente-a-covid-19/

[2] Alguns professores da Escola Estadual de Educação Básica e Profissional José Aprígio Brandão Vilela, onde me formei técnico em biocombustíveis, em 2012.