sexta-feira, 15 de maio de 2020

O psicanalista e o "emoji" do coração - Coluna Saúde-se


Todo psicanalista certamente já viu algum de seus analisantes chegar ao seu consultório e dizer, de uma forma ou de outra: "você é um amor de pessoa!" Alguns deles, mais expressivos, podem até mesmo fazer aquele famoso sinal do coração com as mãos. Evidente que isso se torna um momento de descontração e fala algo da relação transferencial da/o analisante com o/a analista. Ponto pra a/o colega! Encontrar alguém que te escute e te incentive a contar a tua história, mostrando interesse por ela, é algo que não se consegue em qualquer lugar. Por isso as pessoas procuram o divã. Ponto para os nossos analistas!

Só que nem sempre é esse o ânimo do sujeito que se coloca em análise. A causa? O mesmo "coraçãozinho"; ou, mais precisamente, o S2. A letra "esse" colada ao número "dois" causa a ligeira impressão do desenho de um coração. Principalmente há alguns anos atrás, esse era um símbolo bastante utilizado nos "SMS", nos "posts" do "Orkut" e até mesmo do "Facebook". Com o tempo, ele foi substituído por formas prontas, os famosos "emojis". Coincidentemente, S2 é o sinal utilizado por Jacques Lacan para designar, trocando em miúdos, o "desfile da palavra", como diria Joël Dor, ou seja, o que seria a emergência da fala numa sessão de análise, quando a/o analisante se permite falar, surpreendendo-se frequentemente com o que fala. 

Diferentemente do "emoji" ou do sinal de coração, para a psicanálise o S2 significa uma necessidade de garantir que o analisante fale, com o mínimo de controle e de pudor. Assim, é dever do analista se colocar como S2, ou seja, como garantidor da fala, interrompida somente se estritamente necessário. Como se sabe, nem sempre  aquilo que o/a analisante fala e a/o analista lhe devolve, geralmente na forma de uma questão, lhe agrada. É aqui onde S2 não é "coraçãozinho", nem dito, nem gesticulado, tampouco escrito. S2, na psicanálise, é falar (enquanto analisante) e dar condições para a fala (enquanto analista); esse "falar" deve sempre partir de uma posição de questionamento, jogando uma palavra, uma frase como propulsora da próxima. Esse é o papel da/o analista na maioria do tempo de sessão. É aqui onde ganham espaço as maiores ambivalências - ao passo que o/a analisante experimenta um certo bem-estar, por poder falar "o que vier à cabeça", ele, frequentemente, ouve (ou vê) do analista um questionamento que põe em dúvida toda aquela certeza que a sua fala carrega, muitas vezes fruto de muita reflexão fora do consultório. "Poxa! Mas eu tinha certeza que o meu problema era devido a isso, e esse cara vem agora colocar em dúvida essa minha certeza?!" 

É aí que S2 não significa "amorzinho", "legalzinho" e sim "estraga prazeres" ou algo como :/ ou :|
É dever do analista ser um pouco "estraga prazeres", localizar para o analisante os pontos "furados" de sua fala, as inconsistências, contradições, a fim de possibilitar a continuidade do caminho de reflexão que este último necessita seguir para poder construir um sentido para sua experiência de vida, um sentido capaz de proporcionar que ele colha dessa experiência o bem-estar, o fruir e o gozar da vida, como ambicionou aos seus analisantes um dia Sigmund Freud. Mas esse bem-estar só é possível pelo caminho do que Jacques-Alain Miller chamou de "bem-dizer", que nem sempre é "bendizer", o S2.

Samuel Melo é natural de Maceió, um homem pardo, psicanalista, formado em psicologia pela Universidade Federal de Alagoas.

Currículo: http://lattes.cnpq.br/3326945607744321

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