quinta-feira, 18 de junho de 2020

Ouvir a fala, agir sobre o discurso - Coluna Saúde-se

Na psicanálise, a fala tem um lugar central. Sem ela, é impossível dar início e continuidade a esse trabalho rumo a uma vida com menos sofrimento. Junto à fala, estão as condições e proibições que ditam o ritmo de sua articulação - as regras, os tabus etc. Nenhum de nós pode sair por aí falando o que quer, ainda que alguns sujeitos acreditem nessa absoluta "liberdade de expressão" que a cadeia e a reprovação social contestam devastadoramente. O ponto central ao redor do qual pretendo caminhar, no entanto, tal como se faz com um moinho de farinha, é a existência mesma dessa estrutura que se impõe como condição à emergência da fala, isto é, o que chamamos, com Michel Foucault, de "discurso". O discurso, no sentido filosófico foucaultiano, é entendido como uma voz sem nome que antecede a fala, cuja materialidade é bastante real e mesmo assustadora (Michel Foucault, 1970/1999)[1].

Quando se fala em racismo estrutural, por exemplo, é à estrutura racista e escravocrata da República brasileira que se referem os denunciantes. Ou seja, o que está em jogo aí não é a intenção individual de cada cidadão, de cada policial militar, mas o comportamento já quase automático que um dia foi assumidamente racista e, com o tempo, à medida que houve uma aparente reflexão a respeito da escravidão e da segregação racial, passou a ser desautorizado de algum modo. Parece, no entanto, que no Brasil essa "consciência negra" surgiu apenas como uma resposta à pressão internacional pelo fim da escravidão, assim como, até 2016, o país mostrava certa "preocupação" com as questões ambientais, o que, na prática, não passa, até hoje, de uma resposta às exigências europeias dos famosos "celos de sustentabilidade", os ISO's "da vida", impostos por muitos países como condição a qualquer negociação industrial. Em suma, houve e há no nosso país, quanto ao racismo e quanto à sustentabilidade, uma demagogia marcada pela modificação das palavras sem uma mudança real na estrutura escravocrata, racista e ambientalmente insustentável. Podemos, então, dizer que, no que se refere à escravidão e à sustentabilidade ambiental, o Brasil é um carro popular com fantasia esportiva - uma lataria esquisita que guarda um motor incapaz de transpor o menor dos alagamentos. 

Dito isso, que quando falamos em "discurso", aqui, nos referimos à estrutura que, em grande medida, dirige os comportamentos das pessoas, fazendo-as agir automaticamente, sem pensar, podemos agora entrar mais diretamente no tema da psicanálise, o que o título do post promete. Vamos lá!

Adentrar na seara da psicanálise e, mais especificamente, na seara da psicanálise lacaniana requer alguns reposicionamentos quanto ao discurso. Isso porque me parece que a ideia de discurso em Foucault, apesar de ser fonte importante para a psicanálise para se pensar política e sociedade, limita-se ao campo jurídico e trata das relações de poder implicadas na existência de um "sujeito do direito", ou seja, o que se convencionou chamar, com razão, de "indivíduo" - o portador de um CPF, de um RG, de uma CNH.     

Em Lacan a pegada é outra! No Seminário 17 (Jacques-Lacan, 1991/1992)[2], o psicanalista trata dos quatro discursos que atravessam o sujeito: o discurso do mestre, o discurso histérico, o discurso universitário e o discurso do analista. Discurso, aqui, vale pontuar novamente, é essa estrutura, essa "rede de saber", ou seja, um conjunto de regras, preceitos e direcionamentos implícitos que dirigem a ação de um cidadão, de um profissional, de um sujeito. Assim como podemos falar em um "discurso racista", podemos falar de qualquer discurso, que é guiado por uma "verdade" (que pode muito bem ser uma mentira no que concerne aos fatos), e aqui o discurso se assemelha a uma "moral", a uma "ética" qualquer que, como sabemos, variam de acordo com cada cultura e até de família para família.

Nos deteremos no "discurso do analista". O leitor lembra de quando falamos, lá no primeiro parágrafo, que o discurso é essa "condição" para a fala? Ou seja, ele é o que antecede a fala, impondo-lhe as suas condições para surgir. É por isso que ninguém pode falar o que quiser sem ter de responder por isso e sem ter uma ética, uma moral, que sustente sua fala. Bom, o discurso do analista é uma variante bastante distinta de discurso - ele também impõe condições, mas condições que, por exemplo, impulsionam o sujeito muito mais a falar do que a calar-se, muito mais a "faltar" do que a "completar-se", visto que está, justamente, na falta a potência - se não sei, buscarei saber e descobrirei; se não tenho, buscarei e passarei a ter (seja lá o que for).

Antonio Quinet (2009)[3] observa como cada sessão de análise deve obedecer a uma  política da falta e, nessa condição, como o analista constrói toda uma tática no momento da sessão, visando à garantia de que ele próprio ocupe e não deixe de ocupar o lugar de analista e que o analisante se mantenha na direção da análise, não desviando-se para outros caminhos analiticamente improdutivos. Em outras palavras, há certo esforço para que, na análise, se estabeleça uma relação "analista-analisante" e não qualquer relação de poder ou jogo de forças. É por isso que o Quinet pontua como o analista deve esquivar-se do "poder" que a própria transferência lhe confere. Noutras palavras, o discurso do analista visa à localização do poder no seu devido lugar - no significante (S2), na fala do analisante, esse "sujeito-suposto-saber".

Foucault e Lacan parecem, nalguma medida, tratar de um mesmo problema - o discurso, essa estrutura que antecede e condiciona a fala e o comportamento. Me parece, no entanto, que a diferença fundamental das suas obras concerne ao seu foco - o campo jurídico, no caso de Foucault; o campo clínico, no caso de Lacan. E, além disso, parece que, pela própria natureza de sua investigação, Lacan foi mais adiante do que Foucault no estudo do discurso, transpondo o âmbito do "sujeito do direito" para o do "sujeito de direito", esse sujeito que é atravessado não somente pelas forças e poderes jurídico-políticos, mas que sofre a influência irresistível da linguagem e do inconsciente (que é estruturado como uma linguagem).

Aplicação e implicação disso nas sessões


Um sujeito pode falar sorrindo enquanto "chora por dentro". É a esse "chorar por dentro" que o analista deve responder e é sobre ele que deve agir. Significa dizer que "ir na onda" do afeto momentâneo impresso pelo sujeito, por exemplo, numa frase impedirá o analista de ser analista e poderá causar mal-estar na sua relação de trabalho com o analisante, porque, dentre outras implicações técnicas, pode ser que fique a impressão, por parte deste último, de que sua fala não foi adequadamente ouvida, seja pela aparente desatenção do analista ou porque ele, supostamente, não conheça a história do sujeito, "mesmo depois de eu falar tanto sobre mim". Essas impressões podem ser conscientes ou inconscientes e têm, igualmente, consequências negativas sobre a continuidade da análise.

Esse mal-estar aparece frequentemente, nas relações interpessoais de qualquer um, no clássico "climão" que é causado quando concordamos, por exemplo, com alguém que diz que está "feio" ou "mal vestido". Ao dizer que está "feia", uma pessoa frequentemente busca ouvir de seu interlocutor uma resposta contrária a essa afirmação. Quando essa pessoa que lhe ouve concorda com isso que ela disse, ao invés de discordar e a elogiar, se instala o "climão". Vale dizer que esse exemplo nos serve apenas para ilustrar como o discurso está presente na fala do dia-a-dia e não significa que, na sessão de análise, o analista deva trabalhar no sentido de alimentar quaisquer fantasias de seu ou sua analisante. Muito pelo contrário, mesmo porque seu compromisso é com a garantia de que o analisante fale e esse direcionamento guarda consigo certo mal-estar (ver post "O psicanalista e o 'emoji' do coração"), mas esse é um mal-estar que visa a um "bem-ser"[4], que, por sua vez, é diferente de um "bem-estar".

Disso resulta que é a partir da leitura clínica geral do caso do sujeito que o psicanalista deve ouvir e agir sobre o que ele fala. Nas sessões, o analista deve estar atento àquilo que dura, que se repete; e isso deve receber maior atenção do que aquilo que é efêmero, que surge num momento e depois não aparece mais. Vale observar, nesse ponto, que nem sempre as repetições aparecem na forma de fala articulada. Muitas vezes, é um comportamento, por exemplo, que se repete, podendo reproduzir cenas traumáticas ou marcantes da infância, as quais precisam ser exploradas. As repetições dizem algo do que condiciona e possibilita a emergência da fala e do comportamento. Seguir a trilha dessas repetições aproxima o analista de descobrir qual é o discurso que guia a vida do analisante.

Pode-se dizer que numa frase dita ou escrita a um analista receberá dele maior atenção o que está nas suas entrelinhas. As vírgulas, os pontos, os elementos sintáticos de uma frase e que ditam o ritmo de sua expressão (se será uma leitura "corrida", lenta, com pausas), é isso o que captura a atenção equiflutuante do analista, que nem por isso ignora qualquer palavra que componha a frase. É nisso e noutras coisas que ele, o psicanalista, não é assim tão diferente do restante da população, não é assim tão esquisito, tão estranho. Isso porque, na verdade, no cotidiano, o que, até certo ponto, movimenta nossos afetos é a "forma" como dizemos e ouvimos as frases. É absolutamente conhecida do leitor a popularidade da expressão: "não fiquei brava pelo que ela falou, mas pelo jeito como falou". Do mesmo modo, os insultos são comuns, por exemplo, entre alguns grupos de amigos, e carregam consigo, muitas vezes, significados que apontam para a aceitação grupal do insultado - ser insultado, nesse contexto específico, significa que, de algum modo, se é conhecido e reconhecido. Ademais, lembremos dos trotes nas universidades, por exemplo, onde os calouros são, algumas vezes, expostos ao ridículo, pintados, molhados, derrubados ao chão, tudo isso aos risos e gargalhadas e tendo como pano de fundo o fato de terem sido aprovados num vestibular e estarem sendo recepcionados e iniciados na vida acadêmica pelos veteranos[5]. Diante disso, podemos dizer que o cidadão comum, que não é psicanalista, considera o ponto de vista do discurso quando analisa as frases e acontecimentos do dia-a-dia. O discurso é esse "pano de fundo".

O que torna o psicanalista um pouco esquisito, se comparado ao resto da população, é que ele, por exemplo, ao estudar sobre os neurônios, se interessará, sobretudo, pelas sinapses, pelo entremeio, por aquilo que se movimenta "pelos meios" e que é o meio pelo qual acontecem as trocas informacionais (quase informáticas!) no interior de cada massa encefálica. A posição desse profissional é essa porque o sujeito do inconsciente, qualquer pessoa que está inserida na linguagem, que fala e que ouve (e se não ouve ou fala, expressa a linguagem por outras vias), qualquer sujeito está entre um significante e outro, está rachado, dividido (à exceção de alguns casos clínicos específicos). O cálculo neurótico, o que orienta a escritura de seu "romance pessoal", é, na maioria dos momentos, marcada pelo ponto de interrogação: o que quero? quem sou? 

É por isso que a posição "de meio", "no meio", "para o meio" é tão necessária ao trabalho do psicanalista. Em grande medida, para se seguir e estudar os destinos do inconsciente e suas formações, é necessário entrar numa embarcação que esteja apta a seguir sua corrente. Penso que essa embarcação é, nalguma medida, a escuta técnica tal como foi apresentada até aqui. 

O profissional da psicanálise precisa interpretar o que se fala e o que permanece no silêncio, esse discurso que diz alguma coisa, mesmo sem falar.


Samuel Melo é natural de Maceió, preto, psicanalista, formado em psicologia pela Universidade Federal de Alagoas.

Este artigo contou com a colaboração técnica do meu amigo André Guedes (Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano em Maceió), embora o que aqui se diz não reflita necessariamente o seu ponto de vista.

Currículo: http://lattes.cnpq.br/3326945607744321



Referências e notas


[1] FOUCAULT, Michel. (1970/1999). A ordem do discurso. Tradução: Laura Fraga de Almeida Sampaio. São Paulo, SP: Edições Loyola.

[2] LACAN, Jacques. (1991/1992). O seminário, Livro 17: o avesso da psicanáliseRio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar Ed.  

[3] QUINET, Antonio. (2009). A estranheza da psicanálise. Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar Ed.

[4] Esse ser guiado pela reflexão, que, por isso mesmo, sofre menos do que sofreria se não fizesse análise. Não significa que eu acredite haver alguma "completude" nesse ser, mesmo porque é a "falta-a-ser" o que direciona o pensamento psicanalítico lacaniano. "Bem-ser", aqui, vem pra significar um "bem-estar" que não abre mão do "mal-estar" de ter de falar sobre e responder pelas coisas mais difíceis durante a análise.

[5] Evidente que não podemos naturalizar os exageros igualmente conhecidos no que toca aos trotes. Tudo tem limite!

quarta-feira, 10 de junho de 2020

Saliva, fala, Coronavírus e inconsciente - Coluna Saúde-se

É do conhecimento da maioria de nós que o Coronavírus, assim como outros tipos de vírus, pode ser expelido do corpo da pessoa infectada através da sua saliva ou, melhor dizendo, através das gotículas salivares inevitavelmente projetadas ao ar quando se articula a fala. O resultado dessa projeção é a possibilidade de infectar outras pessoas que tenham contato com o fluido corporal.

Em tempos de pandemia, alguém que tenha conhecimento disso tomará cuidado ao entrar em contato com alguém que se põe a falar sem o uso de máscara. O Coronavírus é um risco invisível que, apesar disso, pode ser percebido por alguém que tenha atentado para as recomendações dos órgãos mundiais e locais de saúde.
Há uma semelhança curiosa entre o Coronavírus e o inconsciente: ambos nos afetam pela via oral, da fala. Ainda que haja outras maneiras de se infectar com o vírus e também outras maneiras de falar e ser entendido, privilegio aqui a via oral porque é o que vem a calhar nesta discussão.

Não é nada difícil ser infectado ou infectar alguém com o Sars-CoV-2. Do mesmo modo, é inevitável não afetar e ser afetado pelos processos inconscientes através da fala e dos efeitos da fala. Na verdade, não é necessária nenhuma sessão de exorcismo para se ver e ouvir o inconsciente em ação. 

Certo dia recebi o seguinte questionamento: - "E se a pessoa chegar ao consultório e não falar nada, como você vai fazer pra atendê-la?"

Eu respondi que o fato de não falar nada diz, contudo, alguma coisa. Jacques Lacan (1953/1998)[1] já havia nos dado indicações de que um gesto, um olhar, um ato qualquer, mesmo o silêncio, deve ser observado pelo psicanalista como ponto de abertura para análise, assim como qualquer fala ou movimento do analista é interpretado pelo analisante. Nas palavras do mestre: "[...] a fala, mesmo no extremo de sua usura, guarda seu valor de téssera[2] [...] mesmo se não comunica nada, o discurso representa a existência da comunicação" (Jacques Lacan, 1953/1998, p. 253). Para exemplificar isso que aqui, talvez, seja difícil para o leitor entender, imagine a leitura que cada um de nós faz hoje ao ver uma pessoa na rua sem máscara. O não uso da máscara levanta questões sobre o porquê daquilo: pode ser uma pessoa negligente, egoísta, desinformada, desobediente à lei etc. Da mesma forma, alguém que chega ao consultório de um analista e permanece em silêncio deixa "atrás de si" rastros de fala: mesmo em silêncio, ela está ali, diante do analista, um profissional a quem procuramos justamente para falar e com quem ela, provavelmente, falou antes por telefone, WhatsApp, e-mail etc. para marcar a sessão. Além disso, justamente por esse silêncio ser, de antemão, algo inesperado, uma vez que alguém que vai a um psicanalista vai lá justamente pra falar, o seu silêncio é gritante o suficiente para ser questionado pelo analista e se tornar tema de "conversa" ou, melhor dizendo, material para as entrevistas preliminares, por exemplo. Entretanto, o leitor não deve interpretar isso que acabei de falar como algo do tipo Lie to me. A psicanálise jamais abre mão da fala (que pode também ser articulada através de línguas de sinais, como a LIBRAS) nas suas interpretações. Assim, a análise de um gesto, de um silêncio, só fará sentido quando ancorada na fala do sujeito.

Nas sessões de psicanálise há sempre coleta de saliva, se o leitor me permite introduzir um trocadilho. E é curioso como essa coleta, no âmbito médico, é feita com o paciente em silêncio. Isso também pode acontecer na análise!

Tudo o que está dito antes da fala: o silêncio, a presença no consultório, o atraso, o chegar adiantado... diz respeito, em parte, à natureza transpessoal do inconsciente - é o discurso de um outro que leva alguém ao analista, seja o Conselho de Psicologia que lhe chama a atenção com um outdoor, seja a narração da experiência analítica de um colega ou parente... O inconsciente está impregnado no sujeito, na cultura, no divã/poltrona do analista ou na intimidade de um quarto. 

O inconsciente é mais contagioso que a Covid-19, pois sua pandemia não passará algum dia e sua afecção demanda um duradouro "tratamento", um engajamento analítico que não equivale a 14 dias de isolamento em casa. Pelo contrário, exige a visita, pelo menos semanal, ao consultório do analista, seja isso feito presencialmente ou de forma virtual. 

Uma diferença importante entre o vírus e o inconsciente é que o conhecimento da existência desse primeiro deve nos levar a evitá-lo, a fugir dele,  como recomendam os especialistas. No caso do inconsciente, ao contrário, quanto mais tomamos conhecimento de como ele nos afeta e nos constitui, mais devemos conhecê-lo. É isso o que recomendam os especialistas. Psicanálise é uma questão de saúde pública!


Samuel Melo é natural de Maceió, preto, psicanalista, formado em psicologia pela Universidade Federal de Alagoas.

Currículo: http://lattes.cnpq.br/3326945607744321

Referência e nota

[1] LACAN, Jacques. (1953/1998). Escritos. Rio de Janeiro: Zahar.

[2] Espécie de ficha, inscrição metálica utilizada na Roma Antiga cuja função era comunicar algo, fosse um evento, uma identificação em forma de senha etc.