quarta-feira, 10 de junho de 2020

Saliva, fala, Coronavírus e inconsciente - Coluna Saúde-se

É do conhecimento da maioria de nós que o Coronavírus, assim como outros tipos de vírus, pode ser expelido do corpo da pessoa infectada através da sua saliva ou, melhor dizendo, através das gotículas salivares inevitavelmente projetadas ao ar quando se articula a fala. O resultado dessa projeção é a possibilidade de infectar outras pessoas que tenham contato com o fluido corporal.

Em tempos de pandemia, alguém que tenha conhecimento disso tomará cuidado ao entrar em contato com alguém que se põe a falar sem o uso de máscara. O Coronavírus é um risco invisível que, apesar disso, pode ser percebido por alguém que tenha atentado para as recomendações dos órgãos mundiais e locais de saúde.
Há uma semelhança curiosa entre o Coronavírus e o inconsciente: ambos nos afetam pela via oral, da fala. Ainda que haja outras maneiras de se infectar com o vírus e também outras maneiras de falar e ser entendido, privilegio aqui a via oral porque é o que vem a calhar nesta discussão.

Não é nada difícil ser infectado ou infectar alguém com o Sars-CoV-2. Do mesmo modo, é inevitável não afetar e ser afetado pelos processos inconscientes através da fala e dos efeitos da fala. Na verdade, não é necessária nenhuma sessão de exorcismo para se ver e ouvir o inconsciente em ação. 

Certo dia recebi o seguinte questionamento: - "E se a pessoa chegar ao consultório e não falar nada, como você vai fazer pra atendê-la?"

Eu respondi que o fato de não falar nada diz, contudo, alguma coisa. Jacques Lacan (1953/1998)[1] já havia nos dado indicações de que um gesto, um olhar, um ato qualquer, mesmo o silêncio, deve ser observado pelo psicanalista como ponto de abertura para análise, assim como qualquer fala ou movimento do analista é interpretado pelo analisante. Nas palavras do mestre: "[...] a fala, mesmo no extremo de sua usura, guarda seu valor de téssera[2] [...] mesmo se não comunica nada, o discurso representa a existência da comunicação" (Jacques Lacan, 1953/1998, p. 253). Para exemplificar isso que aqui, talvez, seja difícil para o leitor entender, imagine a leitura que cada um de nós faz hoje ao ver uma pessoa na rua sem máscara. O não uso da máscara levanta questões sobre o porquê daquilo: pode ser uma pessoa negligente, egoísta, desinformada, desobediente à lei etc. Da mesma forma, alguém que chega ao consultório de um analista e permanece em silêncio deixa "atrás de si" rastros de fala: mesmo em silêncio, ela está ali, diante do analista, um profissional a quem procuramos justamente para falar e com quem ela, provavelmente, falou antes por telefone, WhatsApp, e-mail etc. para marcar a sessão. Além disso, justamente por esse silêncio ser, de antemão, algo inesperado, uma vez que alguém que vai a um psicanalista vai lá justamente pra falar, o seu silêncio é gritante o suficiente para ser questionado pelo analista e se tornar tema de "conversa" ou, melhor dizendo, material para as entrevistas preliminares, por exemplo. Entretanto, o leitor não deve interpretar isso que acabei de falar como algo do tipo Lie to me. A psicanálise jamais abre mão da fala (que pode também ser articulada através de línguas de sinais, como a LIBRAS) nas suas interpretações. Assim, a análise de um gesto, de um silêncio, só fará sentido quando ancorada na fala do sujeito.

Nas sessões de psicanálise há sempre coleta de saliva, se o leitor me permite introduzir um trocadilho. E é curioso como essa coleta, no âmbito médico, é feita com o paciente em silêncio. Isso também pode acontecer na análise!

Tudo o que está dito antes da fala: o silêncio, a presença no consultório, o atraso, o chegar adiantado... diz respeito, em parte, à natureza transpessoal do inconsciente - é o discurso de um outro que leva alguém ao analista, seja o Conselho de Psicologia que lhe chama a atenção com um outdoor, seja a narração da experiência analítica de um colega ou parente... O inconsciente está impregnado no sujeito, na cultura, no divã/poltrona do analista ou na intimidade de um quarto. 

O inconsciente é mais contagioso que a Covid-19, pois sua pandemia não passará algum dia e sua afecção demanda um duradouro "tratamento", um engajamento analítico que não equivale a 14 dias de isolamento em casa. Pelo contrário, exige a visita, pelo menos semanal, ao consultório do analista, seja isso feito presencialmente ou de forma virtual. 

Uma diferença importante entre o vírus e o inconsciente é que o conhecimento da existência desse primeiro deve nos levar a evitá-lo, a fugir dele,  como recomendam os especialistas. No caso do inconsciente, ao contrário, quanto mais tomamos conhecimento de como ele nos afeta e nos constitui, mais devemos conhecê-lo. É isso o que recomendam os especialistas. Psicanálise é uma questão de saúde pública!


Samuel Melo é natural de Maceió, um homem pardo, psicanalista, formado em psicologia pela Universidade Federal de Alagoas.

Currículo: http://lattes.cnpq.br/3326945607744321

Referência e nota

[1] LACAN, Jacques. (1953/1998). Escritos. Rio de Janeiro: Zahar.

[2] Espécie de ficha, inscrição metálica utilizada na Roma Antiga cuja função era comunicar algo, fosse um evento, uma identificação em forma de senha etc.

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