domingo, 25 de outubro de 2020

Meu analista tá me ouvindo? - Coluna Saúde-se

Qualquer pessoa que se coloque diante de um psicanalista vez ou outra se inquietará com a forma da conversa que se desenrola na sessão. Por vezes ela pode ter a impressão de que o analista não entende ou, simplesmente, ignora uma parte do que ela fala. Bom, geralmente não é isso que de fato acontece numa análise. Posso dizer que, na maioria dos casos, essa forma de escuta é um indicativo de que o analista segue fazendo bem o seu trabalho. isso porque o que está em jogo na análise, antes de qualquer coisa, é o desvendar do inconsciente, as suas tramas e formações, de um modo geral. E embora isso só seja possível com o auxílio da consciência - que permite ao analisante encontrar o consultório, pegar um ônibus ou dirigir até lá, telefonar, falar -, é ao inconsciente que o analista voltará os olhos e os ouvidos, o corpo e a sua voz, sempre que ele aparecer na fala da pessoa atendida. Um exemplo bastante ilustrativo disso é quando o analista percebe, na fala do analisante, o mecanismo da negação. E esse, aliás, é um ponto bastante conflituoso e problemático da psicanálise, quando vista e analisada por pessoas que não são da área, inclusive pelos próprios analisantes, podendo dar origem aos mais variados tipos de desavenças - desde uma discordância teórica até o rompimento de uma relação analítica (entre analista e analisante).

A negação é um processo que auxilia muito o analista, na medida em que ela é o que permite que algo recalcado (rejeitado) pela consciência seja novamente admitido por ela, ainda que sob a forma da negação. Uma pessoa que, por exemplo, nalgum momento deseja algo socialmente proibido, que, por ser proibido, é rejeitado pela consciência e tornado inconsciente, poderá encontrar uma forma de readmitir esse desejo na consciência trazendo-o à tona na forma negativa: "eu odeio isso". O analista, diante dessa negação, irá subtrair o "não" implícito da frase e verá razões para apostar que ali se manifesta um desejo tornado inconsciente (Sigmund Freud, 1919/2019, p. 141)[1]. CLARO: isso deve ser considerado levando-se em conta tudo o que já se ouviu do analisante até então. Aquilo que o analista acredita que possa ser uma negação, ele deve explorar, questionar, instigar o analisante a falar sobre, sempre respeitando os seus limites. Tem coisa que você não se sente à vontade pra falar ainda! O analista precisa respeitar isso e, ao mesmo tempo, abrir espaço para que haja cada vez menos inibição da parte do analisante. Sem pressa!

E qual o valor dessa aposta na suposta negação? Bom, ela tem um valor analítico, porque vai dar corda à análise; o sujeito vai se tornando cada vez mais consciente de seus processos, passando a ter mais clareza na condução da sua vida. E essa aposta também tem um valor terapêutico em alguns casos, já que um desejo rejeitado pela consciência pode retornar na forma de sintoma, e basta lembrar que são os sintomas que, na maioria das vezes, levam as pessoas a um psicanalista. De um modo geral, quando esses sintomas são dissecados até se descobrir qual é a trama inconsciente por detrás deles, o sujeito vê aumentarem as suas chances de alívio. Mas a questão da negação é apenas um exemplo de como a atenção do analista deve estar voltada para aquilo de inconsciente que se apresenta na fala do analisante. Esse direcionamento da atenção é o que explica a sensação de não estar sendo ouvido pelo analista.

Por fim, a análise é mesmo inquietante, às vezes. Afinal, trata-se do sentimento infamiliar de se encontrar consigo mesmo. Não é massagem, não é acupuntura... é análise! 

Ah! Sim, sim! Eu diria que seu psicanalista provavelmente está te ouvindo. Na dúvida, aposte nele! Tem um trabalho muito minucioso na base de sua clínica; trabalho de análise pessoal, de estudo e de supervisão (consultoria por parte de outros analistas).


Samuel Melo é natural de Maceió. Preto, psicanalista, formado em psicologia pela Universidade Federal de Alagoas.



Referência

[1]FREUD, Sigmund. (1919/2019). O infamiliar e outros escritos / Sigmund Freud ; seguido de O homem da areia / E. T. A. Hoffmann ; tradução Ernani Chaves, Pedro Heliodoro Tavares [o homem da areia ; tradução Romero Freitas]. -- Belo Horizonte : Autêntica Editora. -- (Obras Incompletas de Sigmund Freud ; 8)