domingo, 16 de janeiro de 2022

A lenda d'O Eu vi - Lendas de Roteiro

    Nos últimos meses, eu venho organizando em Roteiro (AL) uma coletânea de lendas urbanas de terror, como parte de uma estratégia de resgate das raízes culturais do município, para o qual estou retornando, depois de 8 anos estudando e trabalhando em Maceió. Trata-se de uma ação do Projeto Deuscrever, fundado por mim em 2015 e hoje atuante como facilitador da formação cidadã e intelectual de roteirenses em diferentes idades. Dentre as dezenas de contos coletados e registrados, em inúmeras conversas com moradores da cidade, uma lenda se destacou para mim, por sua abrangente possibilidade de me suscitar reflexões, além dos inusitados acontecimentos reais em torno dele. Trata-se do conto chamado pelas autoras de "O 'Eu vi'". Vou narrar o conto pra você:

O "Eu vi"

    Cinco amigas estavam fazendo uma festa do pijama, em uma casa alugada, de aparência sombria, com a pintura gasta da chuva, na rua do Ginásio. Duas das mais velhas se dispuseram a preparar um lanche noturno, enquanto as mais novas ficaram jogando Uno na sala. Uma das meninas que foram cozinhar de repente sentiu vontade de se juntar às mais novas para jogar, deixando a outra sozinha no preparo do lanche. Passados alguns minutos, a menina que estava sozinha apareceu repentinamente diante da cortina vermelha que separava a sala da cozinha. Ela estava pálida e tremendo, quase sem voz, falando:  - eu vi!

    Após algum tempo, as amigas conseguiram acalma-la, e então perguntaram: - o que você viu? Mas ela simplesmente não sabia descrever, apenas repetia: - eu vi.
Até hoje, a menina não consegue falar sobre o que viu e evita o assunto a todo custo. Ela, inclusive, se mudou para Satuba depois desse acontecimento.

Autoras: Léia Melo, Joyce Cristine e Jaqueline Texeira
Revisão: Samuel Melo
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    Independente do que o conto seja capaz de despertar em você, leitora ou leitor, um acontecimento curioso nos chamou a atenção recentemente. Eu estava em Maceió, como de costume, quando recebi no WhatsApp uma mensagem da Léia, uma das autoras e minha irmã. Ela dizia: "Roubaram a nossa lendaaaaaa". 

    A mensagem trazia a capa do lançamento da Netflix: "Eu vi", uma produção dentro da literatura de terror ou, do ponto de vista psicanalítico, literatura do Infamiliar. Ficamos chocados, mas, mesmo assim, não acionamos nossos advogados, porque não os temos (😓).
Como assim? Existe um arquétipo do "eu vi"? Ou alguém "nos ouviu"?

    Calma! Ainda não há razão, me parece, para falar que existe um "arquétipo do 'eu vi'". Jung não precisará ressuscitar para dizer: "- eu vi!" Quer dizer, 😅 ele não virá para dizer: "- tá vendo? Eu falei!"

    Estaremos seguros dentro da seara da psicanálise lacaniana. Isso porque se há algo universal na atividade psíquica humana, é a sua inabilidade em falar, inscrever e descrever o Real - esse que é, segundo a psicanálise lacaniana, o campo que congrega tudo aquilo que a razão humana não consegue entender e explicar.

    É ao Real que a expressão "eu vi!", nesse contexto, me remete. Isso porque ela me lembra das limitações do simbolismo humano de significar o inefável, o indizível da morte, por exemplo, que está na superfície de todo e qualquer conto e literatura de terror. Esses contos expressam a angústia subjacente nas inúmeras tentativas da psique humana de entender, categorizar, nomear esse inevitável e temido evento, o qual nosso inconsciente jamais aceitou como possibilidade. Ele, esse antiquísimo selvagem que nos habita, movido pelo mais absoluto animismo, regido pela intuição mais do que pela razão; ele, o inconsciente, com seus fantasmas e suas bruxas, jamais foi capaz de compreender, explicar ou admitir a morte como parte invencível de sua experiência.

    Para além da morte enquanto experiência pura, enquanto efeito, podemos pensar no caminho até à morte. Como aquela busca desesperada por reconforto, por explicações, que é visível quando buscamos o atestado de óbito de um parente, a fim de sabermos qual foi a "causa da morte". Ou quando buscamos "justiça" à nossa família, no momento em que algum dos nossos é ceifado pela maldade de um assassino ou pela imprudência de um motorista bêbado. O atestado e a "justiça" não nos explicam o que é a morte do nosso parente, mas nos fortalecem simbolicamente com o principal alimento humano, a "sopa de letrinhas", as palavras, que nos ajudam a significar, a "explicar" o caminho até à morte. Aliás, não admira que isso baste para trazer algum conforto, porque é exatamente nesse ponto que nós estamos - o caminho até à morte. E até quando vivenciamos a perda de um parente, é com nosso próprio passamento (ou "Passagem", como você verá noutra de nossas lendas urbanas!) que estamos, também, lidando. 

    E é a partir de palavras de um Outro, supostamente detentor de um poder sobre a vida e a morte - a medicina, a justiça, a psicologia, a educação física, a estatística, a epidemiologia, a religião, que vamos construir nossas próprias previsões sobre a morte - a expectativa estatística de vida, a expectativa própria, a partir de nossos comportamentos alimentares e de nossas relações com as drogas etc. Dessa "expectativa própria de vida" surgem, me parece, as mudanças de hábitos, a vida "fitness", assim como o orgulho pela vida curta garantida pelo colesterol alto, álcool, comportamentos perigosos. "Nesse ritmo, não! Não tem santo no céu e na terra que faça 'nois' chegar nos 80", diz a voz de um idoso, que se tornou meme na internet, e que está sempre ao fundo de vídeos gravados em ocasiões de "autodestruição programada", algo que me lembra a "obsolescência programada", que os smartphones parecem nos haver ensinado a usar como uma espécie de fantasia de poder sobre a nossa própria morte, já que, supostamente, a conseguiríamos prever quanto ao tempo, modo e circunstâncias. Vai vendo!

    O conto do "Eu vi" (o de Roteiro, não o da plagiadora Netflix! 😂) já começa enfatizando uma razão muito comum de angústia em Roteiro, assim como em todo o Brasil - o aluguel. "Cinco amigas estavam fazendo uma festa do pijama, em uma casa alugada". Além do motivo do aluguel, aparecem outros aspectos de uma angústia parecida, porque converge para o medo da pobreza - a "aparência sombria" proporcionada pela "pintura gasta da chuva". 

    Ora, em Roteiro é muito comum encontrar casas com esses aspecto, uma vez que mais de 50% da população da cidade vive (ou tenta viver) com uma renda igual ou inferior a meio salário mínimo - R$ 606. A média dos aluguéis cobrados para casas com essa "aparência sombria", ou seja, sem manutenção de pintura e, frequentemente, com estrutura inadequada, costuma variar entre R$ 200 e R$ 350. Isso representa quase metade da renda total da maior parte das famílias de Roteiro. O que resta para comer? Pois é! Isso não deixa de aparecer no conto, quando "duas das mais velhas se dispuseram a preparar um lanche noturno, enquanto as mais novas ficaram jogando Uno na sala". A questão que, para mim, permanece é: o que será que essas meninas foram preparar como lanche? O preparo de um lanche em casas tão pobres costuma demandar muita criatividade para inventar algo que agrade ao paladar, porque os ingredientes são escassos. Por isso, não me surpreende que uma das meninas desista da tarefa e vá se distrair jogando Uno. Eu falo porque já passei muito por isso... 3 horas da tarde, ou 10 da noite, estar reunido com a família e querer tomar um lanche, tendo, porém pouquíssimo dinheiro e quase nada na cozinha. A pobreza é um dos principais caminhos para a morte!

    Bom... a paralisia e o terror da expressão da menina que ficou sozinha na tarefa de preparar um lanche realmente me fazem pensar se o "Eu vi" não poderia ser, em alguma das "festas do pijama" de Roteiro, a falta de comida na cozinha; ou se não poderia ser a vergonha e a frustração de falar para as irmãs e amigas mais jovens que não tinha nada para comer. Por outro lado, tenho certeza que, nas cozinhas, muitas meninas de Roteiro, hoje, vivenciam cenas de terror e medo de morrer... de fome, de vergonha.