domingo, 20 de março de 2022

Economia com psicanálise é possível? Carta-relatório a amigos de México e Uruguai (2020)

    A cidade de Roteiro está localizada no litoral sul do estado de Alagoas, a 50 quilômetros da capital, Maceió, no Nordeste do Brasil. O pequeno município tem aproximadamente 6.650 habitantes (BRASIL, 2020) e uma área total de 128,926 km2. Abrir um consultório particular de psicanálise em Roteiro e torna-lo uma atividade rentável e lucrativa é, sem dúvida, um grande desafio. No município, atualmente, qualquer psicanalista da iniciativa privada irá esbarrar com algumas grandes dificuldades de natureza econômica. Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística - IBGE, em 2018, ano em que foi feito o último levantamento sobre trabalho e renda dessa população, o percentual de pessoas ocupadas com alguma atividade remunerada era de apenas 10,5%, ao passo que 50,1% da população tinha renda média mensal de até meio salário mínimo (BRASIL, 2020), isto é, 522,50 reais ou 97,67 dólares (BRASIL, 2020), o que ilustra a condição econômica precária da população do município e poderia advertir que na cidade há poucas pessoas capazes de manterem honorários próximos da média que se apresenta em outras localidades, como a capital Maceió.

    Além dessas dificuldades em si alarmantes, o psicanalista que se proponha abrir um consultório na cidade costeira ver-se-á também diante de barreiras de ordem subjetiva, que, na verdade, refletem a realidade da maioria dos iniciantes nessa profissão, como o seu grau de reconhecimento diante de seu público-alvo e de seus colegas e mesmo o grau de reconhecimento da própria psicanálise perante a sociedade, além dos processos inconscientes de resistência ao tratamento por parte das pessoas atendidas, mesmo aquelas que acreditam firmemente no tratamento. É antiga a busca de espaço da psicanálise diante das barreiras impostas por outros paradigmas psicológicos e tipos de psicoterapia mais afeitas a certo pragmatismo localizacionista, que se instrumentalizam com inúmeros artifícios materiais, como os medicamentos psiquiátricos e os testes psicológicos, ao passo que a psicanálise resume seu escopo e seu material de trabalho à palavra, isto é, à fala do analisante e à intervenção oral do próprio analista. Como o leitor certamente percebe, ambas dificuldades, as objetivas e as subjetivas, irão ditar o fluxo de pessoas no consultório do analista e também o seu fluxo de caixa.

    Diante desses entraves, pode-se considerar inviável estabelecer um consultório particular de psicanálise em Roteiro? Bom, se formos considerar apenas os números oficiais, a viabilidade se dificulta. Mas estamos aqui falando de psicanálise, essa prática clínica cuja marca característica é certa marginalidade em relação a todo e qualquer discurso oficial. Por isso, o psicanalista não costuma recuar diante das adversidades, nem tampouco se satisfaz com aquilo que qualquer instituição especializada em dados estatísticos diz sobre as populações, pois entende que elas jamais chegarão a um número absoluto, que dê conta de todas as particularidades de um público qualquer. Assim, ele vai até à população lhe ouvir, vai se inserir em determinada região para sentir de perto as dificuldades e localizar as oportunidades, ainda que esse movimento também não vá possibilitar a apreensão perfeita e completa da realidade de um estrato populacional qualquer, pois nem a psicanálise nem qualquer esforço humano é capaz de apreender o Real (FORBES & RIOLFI, 2014), essa instância que alguns filósofos chamam “a coisa em si”, sem nome ou representação numérica, livre de todo viés subjetivo do olhar humano. Com efeito, qualquer avaliação humana de um evento, de uma população etc. está fadado a não passar, no fim das contas, de uma opinião, mesmo que haja algum tipo de consenso em tono dela. A própria condição imposta pela ciência de que qualquer ideia ou teoria seja refutável atesta isso.

     Aliás, é necessário observarmos que a figura do psicanalista, de um modo geral, aquele que possui formação e opera a psicanálise, não pode se confundir com a figura do psicanalista x ou y em específico, dotado de suas particularidades e história pessoal. Por isso, é preciso observar que o modus operandi ao qual me refiro neste post reflete o meu fazer clínico particular – o meu modo de fazer clínica, eu, Samuel Melo – e também se refere ao caso específico da cidade em questão e da minha relação particular com ela e com sua população. É importante não esquecer que a prática da psicanálise, como qualquer profissão, é inevitavelmente atravessada pela singularidade do profissional e não pode ser analisada fora de seu contexto.

    A minha história pessoal e minha formação influenciam grandemente meu “olhar empreendedor”. Antes de me formar em psicologia, ao longo do curso de técnico em biocombustíveis, eu percebi a importância econômica e ambiental de se reciclar os materiais, reaproveita-los e reduzir a produção de resíduos sem utilidade e que sejam danosos ao meio ambiente. Esse aprendizado em grande medida se reflete no meu dia-a-dia de consultório quando busco trabalhar com uma lógica que costumo chamar de “logística reversa aplicada à psicanálise”. O que seria isso? Bom, trata-se de buscar sempre estar atento aos restos, ao que sobra de uma determinada interação, tal como a relação de consumo entre uma empresa e um cliente, que produz vários “restos”, sendo um deles o resíduo sólido. É preciso dar uma destinação correta e, na medida do possível, lucrativa, para esse resíduo; e acredito que isso também seja válido para a psicanálise no seu estudo das relações humanas e seus processos subjacentes.

    No dia-a-dia do meu consultório eu costumo receber um público específico trazido a mim por uma demanda que eu chamo de “resto de outras clínicas” (esteja claro que assim chamo o tipo de demanda, não as pessoas!). São sujeitos que, para tratarem seu sofrimento psíquico, recorreram antes de mim a diversas formas de psicoterapia e intervenções clínicas que têm uma visão muito limitada do acontecimento psíquico, uma vez que ignoram os “resíduos psíquicos” que extrapolam os processos da consciência, isto é, não atentam para aqueles processos de natureza inconsciente que a psicanálise observa muito bem, como a “pulsão de morte”, energia psíquica que lança por terra qualquer argumento que defenda a existência de uma plena tendência à autoconservação no humano. Quando numa sessão de análise eu observo que o sujeito que atendo em algum momento se vê arrebatado por impulsos autodestrutivos inerentes ao psiquismo humano, eu estou reconhecendo a existência de algo que resta, que sobra como um excesso indesejado à consciência; estou reconhecendo a coexistência de uma pulsão de morte e de uma pulsão de vida, uma ambivalência que a psicanálise considera natural, tal como é absolutamente natural que uma porção de biscoitos (produto desejado) e sua embalagem plástica (produto indesejado) coexistam e formem um “todo”, que é o “pacote de biscoitos”. Algumas empresas irão fazer a Logística Reversa desse indesejado e inevitável pacote plástico, outras não; o psicanalista representa essa empresa que o faz!

    Assim como para o célebre químico francês Antoine-Laurent de Lavoisier “na natureza nada se cria, nada se perde, tudo se transforma”, para a psicanálise é necessário dar um tratamento, uma destinação a todos os conteúdos que se tornam visíveis a partir da fala do sujeito, pois é justamente o mecanismo do recalque, a rejeição desses conteúdos, que caracteriza o adoecimento psíquico, na medida em que eles retornam inevitavelmente na forma de sintoma neurótico ou delírio e alucinação psicóticos, tal como poeira escondida debaixo do tapete (FREUD, 2019). A psicanálise entende que é preciso fazer algo também com esses impulsos de morte, algo como um desvio de curso de um rio que transbordou e está na iminência de inundar uma cidade. Negar a existência de processos e conteúdos que contrariem a ordem e a organização da consciência, como algumas intervenções clínicas fazem, não vai ajudar na resolução do problema da pessoa em sofrimento, pois é preciso reciclar, reaproveitar esse excesso e não amontoá-lo em lixões.

    O que primeiramente me impulsionou a iniciar os atendimentos em Roteiro foi o relato de minha mãe, residente na cidade e pastora evangélica, de que muitos membros de sua igreja estavam fazendo uso de medicamentos psicoativos, receitados por psiquiatras da rede pública de saúde do município, e de que não estavam encontrando espaço de fala, por uma série de razões que as impediam de chegar até o serviço psicológico público, o que levava essas pessoas a buscarem outros espaços de escuta que não os consultórios de psicologia das Unidades Básicas de Saúde da cidade, sendo o gabinete da pastora um dos destinos desses cidadãos. Foi aí que percebi que em Roteiro os resíduos psíquicos de grande parte da população não estavam recebendo a devida atenção; não se estava fazendo a Logística Reversa dos processos inconscientes de muitas pessoas dali e, movido ao mesmo tempo por um ideal humanitário inerente à psicanálise (DANTO, 2019) e por uma visão de crescimento material e profissional, decidi ofertar atendimento psicanalítico privado a essa população, tal como uma empresa especializada em gestão de resíduos, que se anima tanto pelo lucro de sua atividade quanto pelo impacto ambiental positivo que irá causar. Assim, a minha oferta de atendimento psicanalítico em Roteiro se deu, em grande medida, em virtude do que restou da relação entre a população e a rede pública de saúde. Novamente, meu trabalho surgiu na cidade como último recurso de algumas pessoas que antes recorreram aos medicamentos psiquiátricos e, desse modo, meu público-alvo continua a ser trazido a mim pela via da demanda que chamei anteriormente de “resto de outras clínicas”.

    Apesar de ainda muito recente para possibilitar uma análise aprofundada de lucratividade, essa intervenção tem se mostrado, desde o início de outubro deste ano (2020), economicamente viável, uma vez que consegui superar suas três principais dificuldades: 1) meu reconhecimento diante do público-alvo; 2) o baixo poder de compra da população e; 3) a disposição de espaço adequado aos atendimentos. Consegui galgar o primeiro entrave fazendo uso da minha fama na cidade, uma vez que sou conhecido pela organização de alguns movimentos sociais de literatura e de arrecadação de donativos em situações de emergência, além de ter residido no município e trabalhado como vendedor de sorvetes, o que me colocou em contato direto com as pessoas durante alguns anos. Além disso, sou filho de uma pastora evangélica proeminente do município, o que me coloca também em posição de destaque na localidade. Assim, bastou me articular com minha mãe para informar a comunidade acerca da oferta de serviço psicanalítico privado para que logo surgissem os primeiros interessados. O segundo obstáculo, a baixa renda da população, consegui transpor através de uma forma alternativa de pagamento – me dispus a receber das pessoas da cidade aquilo que elas pudessem pagar, fosse uma quantidade em dinheiro, fosse algum serviço ou produto, o que significou na prática ora razoáveis valores em dinheiro, ora valores baixos, produtos da terra, como bananas, cacau, mamão, macaxeira, peixes, frutos do mar etc. que, no fim das contas, têm me proporcionado uma rentabilidade financeira acima do ponto de cobertura. Consegui, inicialmente, dois espaços de atendimento na cidade de forma gratuita, cedidos pela igreja de minha mãe, o que extinguiu a terceira dificuldade da intervenção, ou seja, aquela relacionada ao espaço para realização das sessões. Depois da primeira semana de serviço, cheguei à conclusão de que o atendimento virtual, por chamada de voz ou de vídeo, é possível para essa população e, ao mesmo tempo, é logística e sanitariamente mais viável no atual momento, já que assim passo a não ter os custos da viagem de Maceió até à cidade e já que esse tipo de atendimento garante segurança diante da pandemia da Covid-19.

    O consultório de psicanálise é uma empresa de um ramo extremamente arriscado, o da “economia psíquica”. A presença do analisante nas sessões é uma variável que está constantemente à deriva, sendo influenciada por fatores de ordem consciente e inconsciente, bem como econômicas e sociais. O sucesso experimentado até agora pelo estabelecimento de meu consultório virtual em Roteiro não está e não estará jamais absolutamente garantido, justamente pela indeterminação que marca essa prática profissional que toca o mercado das ações do psiquismo humano, tão ambivalente quanto interessante de se estudar. Contudo, tenho conseguido garantir atendimento psicanalítico a essa população que até então não dispunha de clínica particular. O trabalho segue em frente!

Referências

BRASIL. Banco Central do Brasil. [acesso em 27 de novembro de 2020]. Disponível em https://www.bcb.gov.br/

BRASIL. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Cidades e Estados. [acesso em 27 de novembro de 2020]. Disponível em: https://cidades.ibge.gov.br/brasil/al/roteiro/panorama

DANTO, Elizabeth Ann. (2019). As clínicas públicas de Freud: psicanálise e justiça social, 1918-1938. Tradução de Margarida Goldsztajn. São Paulo, SP: Editora Perspectiva. (Coleção Estudos).

FORBES, Jorge; RIOLFI, Claudia. (2014). Psicanálise: a clínica do Real. Barueri, SP: Editora Manole.

FREUD, Sigmund. (2019). Neurose, psicose, perversão. Tradução de Maria Rita Salzano Moraes. Belo Horizonte, MG: Autêntica Editora. (Obras Incompletas de Sigmund Freud).


domingo, 16 de janeiro de 2022

A lenda d'O Eu vi - Lendas de Roteiro

    Nos últimos meses, eu venho organizando em Roteiro (AL) uma coletânea de lendas urbanas de terror, como parte de uma estratégia de resgate das raízes culturais do município, para o qual estou retornando, depois de 8 anos estudando e trabalhando em Maceió. Trata-se de uma ação do Projeto Deuscrever, fundado por mim em 2015 e hoje atuante como facilitador da formação cidadã e intelectual de roteirenses em diferentes idades. Dentre as dezenas de contos coletados e registrados, em inúmeras conversas com moradores da cidade, uma lenda se destacou para mim, por sua abrangente possibilidade de me suscitar reflexões, além dos inusitados acontecimentos reais em torno dele. Trata-se do conto chamado pelas autoras de "O 'Eu vi'". Vou narrar o conto pra você:

O "Eu vi"

    Cinco amigas estavam fazendo uma festa do pijama, em uma casa alugada, de aparência sombria, com a pintura gasta da chuva, na rua do Ginásio. Duas das mais velhas se dispuseram a preparar um lanche noturno, enquanto as mais novas ficaram jogando Uno na sala. Uma das meninas que foram cozinhar de repente sentiu vontade de se juntar às mais novas para jogar, deixando a outra sozinha no preparo do lanche. Passados alguns minutos, a menina que estava sozinha apareceu repentinamente diante da cortina vermelha que separava a sala da cozinha. Ela estava pálida e tremendo, quase sem voz, falando:  - eu vi!

    Após algum tempo, as amigas conseguiram acalma-la, e então perguntaram: - o que você viu? Mas ela simplesmente não sabia descrever, apenas repetia: - eu vi.
Até hoje, a menina não consegue falar sobre o que viu e evita o assunto a todo custo. Ela, inclusive, se mudou para Satuba depois desse acontecimento.

Autoras: Léia Melo, Joyce Cristine e Jaqueline Texeira
Revisão: Samuel Melo
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    Independente do que o conto seja capaz de despertar em você, leitora ou leitor, um acontecimento curioso nos chamou a atenção recentemente. Eu estava em Maceió, como de costume, quando recebi no WhatsApp uma mensagem da Léia, uma das autoras e minha irmã. Ela dizia: "Roubaram a nossa lendaaaaaa". 

    A mensagem trazia a capa do lançamento da Netflix: "Eu vi", uma produção dentro da literatura de terror ou, do ponto de vista psicanalítico, literatura do Infamiliar. Ficamos chocados, mas, mesmo assim, não acionamos nossos advogados, porque não os temos (😓).
Como assim? Existe um arquétipo do "eu vi"? Ou alguém "nos ouviu"?

    Calma! Ainda não há razão, me parece, para falar que existe um "arquétipo do 'eu vi'". Jung não precisará ressuscitar para dizer: "- eu vi!" Quer dizer, 😅 ele não virá para dizer: "- tá vendo? Eu falei!"

    Estaremos seguros dentro da seara da psicanálise lacaniana. Isso porque se há algo universal na atividade psíquica humana, é a sua inabilidade em falar, inscrever e descrever o Real - esse que é, segundo a psicanálise lacaniana, o campo que congrega tudo aquilo que a razão humana não consegue entender e explicar.

    É ao Real que a expressão "eu vi!", nesse contexto, me remete. Isso porque ela me lembra das limitações do simbolismo humano de significar o inefável, o indizível da morte, por exemplo, que está na superfície de todo e qualquer conto e literatura de terror. Esses contos expressam a angústia subjacente nas inúmeras tentativas da psique humana de entender, categorizar, nomear esse inevitável e temido evento, o qual nosso inconsciente jamais aceitou como possibilidade. Ele, esse antiquísimo selvagem que nos habita, movido pelo mais absoluto animismo, regido pela intuição mais do que pela razão; ele, o inconsciente, com seus fantasmas e suas bruxas, jamais foi capaz de compreender, explicar ou admitir a morte como parte invencível de sua experiência.

    Para além da morte enquanto experiência pura, enquanto efeito, podemos pensar no caminho até à morte. Como aquela busca desesperada por reconforto, por explicações, que é visível quando buscamos o atestado de óbito de um parente, a fim de sabermos qual foi a "causa da morte". Ou quando buscamos "justiça" à nossa família, no momento em que algum dos nossos é ceifado pela maldade de um assassino ou pela imprudência de um motorista bêbado. O atestado e a "justiça" não nos explicam o que é a morte do nosso parente, mas nos fortalecem simbolicamente com o principal alimento humano, a "sopa de letrinhas", as palavras, que nos ajudam a significar, a "explicar" o caminho até à morte. Aliás, não admira que isso baste para trazer algum conforto, porque é exatamente nesse ponto que nós estamos - o caminho até à morte. E até quando vivenciamos a perda de um parente, é com nosso próprio passamento (ou "Passagem", como você verá noutra de nossas lendas urbanas!) que estamos, também, lidando. 

    E é a partir de palavras de um Outro, supostamente detentor de um poder sobre a vida e a morte - a medicina, a justiça, a psicologia, a educação física, a estatística, a epidemiologia, a religião, que vamos construir nossas próprias previsões sobre a morte - a expectativa estatística de vida, a expectativa própria, a partir de nossos comportamentos alimentares e de nossas relações com as drogas etc. Dessa "expectativa própria de vida" surgem, me parece, as mudanças de hábitos, a vida "fitness", assim como o orgulho pela vida curta garantida pelo colesterol alto, álcool, comportamentos perigosos. "Nesse ritmo, não! Não tem santo no céu e na terra que faça 'nois' chegar nos 80", diz a voz de um idoso, que se tornou meme na internet, e que está sempre ao fundo de vídeos gravados em ocasiões de "autodestruição programada", algo que me lembra a "obsolescência programada", que os smartphones parecem nos haver ensinado a usar como uma espécie de fantasia de poder sobre a nossa própria morte, já que, supostamente, a conseguiríamos prever quanto ao tempo, modo e circunstâncias. Vai vendo!

    O conto do "Eu vi" (o de Roteiro, não o da plagiadora Netflix! 😂) já começa enfatizando uma razão muito comum de angústia em Roteiro, assim como em todo o Brasil - o aluguel. "Cinco amigas estavam fazendo uma festa do pijama, em uma casa alugada". Além do motivo do aluguel, aparecem outros aspectos de uma angústia parecida, porque converge para o medo da pobreza - a "aparência sombria" proporcionada pela "pintura gasta da chuva". 

    Ora, em Roteiro é muito comum encontrar casas com esses aspecto, uma vez que mais de 50% da população da cidade vive (ou tenta viver) com uma renda igual ou inferior a meio salário mínimo - R$ 606. A média dos aluguéis cobrados para casas com essa "aparência sombria", ou seja, sem manutenção de pintura e, frequentemente, com estrutura inadequada, costuma variar entre R$ 200 e R$ 350. Isso representa quase metade da renda total da maior parte das famílias de Roteiro. O que resta para comer? Pois é! Isso não deixa de aparecer no conto, quando "duas das mais velhas se dispuseram a preparar um lanche noturno, enquanto as mais novas ficaram jogando Uno na sala". A questão que, para mim, permanece é: o que será que essas meninas foram preparar como lanche? O preparo de um lanche em casas tão pobres costuma demandar muita criatividade para inventar algo que agrade ao paladar, porque os ingredientes são escassos. Por isso, não me surpreende que uma das meninas desista da tarefa e vá se distrair jogando Uno. Eu falo porque já passei muito por isso... 3 horas da tarde, ou 10 da noite, estar reunido com a família e querer tomar um lanche, tendo, porém pouquíssimo dinheiro e quase nada na cozinha. A pobreza é um dos principais caminhos para a morte!

    Bom... a paralisia e o terror da expressão da menina que ficou sozinha na tarefa de preparar um lanche realmente me fazem pensar se o "Eu vi" não poderia ser, em alguma das "festas do pijama" de Roteiro, a falta de comida na cozinha; ou se não poderia ser a vergonha e a frustração de falar para as irmãs e amigas mais jovens que não tinha nada para comer. Por outro lado, tenho certeza que, nas cozinhas, muitas meninas de Roteiro, hoje, vivenciam cenas de terror e medo de morrer... de fome, de vergonha.