quinta-feira, 13 de agosto de 2020

Meu coroa, o Super Choque e pretitude


Como se sabe, dois eventos importantes, além da catástrofe do novo Coronavírus, se desenrolam na atualidade do Brasil: a luta mais aberta contra o racismo e o dia dos pais. O primeiro acontecimento é mais amplo e significativo do que o segundo[1], mas é de se questionar se eles são mesmo separáveis. No contexto que aqui apresento, esses dois eventos estão interligados pelo fato de se referirem à propagação/manutenção da vida, no sentido biológico e cultural. Acredito nisso porque, na nossa cultura, a palavra "pai" está em grande medida vinculada ao nascimento de alguém, biologicamente, e à manutenção dessa vida, culturalmente falando - o sustento, a pensão etc.[2], assim como a luta antirracista visa à manutenção da vida e, mais especificamente, a barrar nossa necropolítica de cada dia.   

Mas o que têm a ver "meu coroa, o Super Choque e pretitude"? Bom... meio que tudo!

Vou falar um pouco da minha experiência com essas duas figuras e tentar articular isso com essa condição de ser preto, a pretitude. A primeira figura da história é o meu pai - Adelmo Melo, um homem preto, eletricista; a segunda é o super-herói da Milestone Media DC Comics - o Super Choque, um jovem preto chamado Virgil Hawkins que adquiriu superpoderes relacionados à eletricidade de forma bem diferente da do meu pai. Bom, acho que esse é um ponto interessante pra começar a conversa: como cada um deles adquiriu os superpoderes relacionados à eletricidade. 

Ainda que meu pai não tenha aprendido a ser eletricista num acidente em sentido estrito, o fato de ele haver desenvolvido essa técnica de ganhar a vida não deixa de ser um acidente em sentido figurado. Acho que é possível pensar assim porque as oportunidades para uma pessoa de pele escura no Brasil são bastante escassas e, vale dizer, nos tempos do meu coroa eram bem piores do que hoje. Posso dizer, com isso, que Virgil e Adelmo se tornaram eletricistas por acidente e são, por isso, um ponto fora da curva, homens pretos que encontraram uma forma de sobrevivência diferente daquelas alternativas elencadas por Mano Brown pra essa galera - crime, futebol, música. Não que exista demérito em se ser jogador de futebol, cantor... acho que o leitor está entendendo o caminho do texto.  

Mesmo assim, é preciso reconhecer que aquilo que o Super Choque faz não é bem um trabalho remunerado, como ser eletricista, e que, em grande medida, ele não escapa daquela tríade apresentada por Mano Brown em suas músicas - acaba encontrando uma forma de existência simbólica através da fama, sendo, digamos, um pouco mais enérgico do que a maioria. Mas o leitor poderia me advertir que o trabalho remunerado não deixa de ser uma busca por existência simbólica e não só material. E eu seria obrigado a concordar com essa observação, porque também acredito que um ser movido pelo desejo, como o humano, jamais deixaria de enriquecer e enaltecer com diversos símbolos essa existência material, conferindo ao trabalho (e ao emprego) todo um teor de dignidade expresso, por exemplo, no dito popular "o trabalho dignifica". Isso é visível na própria experiência do meu pai, quando se identifica à profissão ao ponto de dizer que vai "morrer trabalhando", não por necessidade, mas por desejo.

Tornar-se eletricista foi, aliás, o que aproximou o meu velho do desejo, no sentido estrito de sua realização, sendo "desejo" o oposto de "necessidade" justamente por unir duas "fomes" - a fome de comida e a de reconhecimento simbólico, e provocar, com isso, um movimento em direção à "realização", a qual penso como sendo qualquer efeito desse equilíbrio de "fomes" no campo da ação. Ser eletricista proporcionou ao meu pai, além de uma maior remuneração, a liberdade da autonomia, o famoso "trabalhar para mim mesmo" que se opõe à condição, também famosa em Alagoas, de "meia sola", aquele "trabalhador precário, o sujeito que precisa realizar serviços [...] pesados, sazonais e que são remunerados abaixo das necessidades de consumo de sua família" (Charles dos Santos, 2019)[3], aquele "trabalhador de moagem", que trabalha na usina de açúcar e álcool durante seis meses do ano e fica desempregado durante o outro semestre. Lembro quando, em Teotônio Vilela/AL, os números dos assaltos e invasões a residências para furto aumentavam exponencialmente nesse semestre de entressafra, quando muitos "meia sola" recorriam à primeira opção apresentada por Mano Brown - o crime. Meu pai, como a maioria dos homens pretos, passou muito tempo sendo um "meia sola" em diversas cidades do estado e também fora dele e, assim como o Super Choque, precisou ser um tanto mais enérgico do que a maioria para poder se tornar eletricista, coisa que não é assim tão necessária com relação às pessoas brancas, que já contam com todo um histórico de privilégios e facilidades. É evidente que há, no Brasil, muitos brancos pobres e que enfrentam muitas dificuldades de sobrevivência. Mas existe um acréscimo de dificuldade significativo na experiência de um brasileiro preto, que tem de enfrentar os múltiplos efeitos do racismo. E isso é ainda mais verdadeiro na experiência de pretos retintos, aqueles de pele mais escura em relação aos chamados pardos.

Além de ser fruto de pensamento, essa aproximação das duas personagens (o Super Choque e o meu pai) não se deu na minha cabeça de forma forçada pela reflexão. Ela aconteceu na minha experiência mesma. O início da carreira do meu velho como eletricista e as primeiras transmissões de Super Choque às quais tive acesso aconteceram, mais ou menos, ao mesmo tempo. Lembro que, na escola, alguns colegas me irritavam comparando meu pai ao Super Choque, sabendo de sua profissão - aliás, esse era o nome do meu pai na minha escola, Super Choque. Hoje posso concordar com esses pequenos bullies. A semelhança é clara - dois homens pretos e eletricistas. Os dois falam muito sobre representatividade preta, sobre as condições para se obter uma profissão reconhecida, razoavelmente remunerada; remunerada com dinheiro ou com dinheiro e existência simbólica. 

Aliás, o "nome de trabalho" que meu pai adquiriu ao longo de 20 anos de "eletricismo" me parece dizer muito sobre o quanto de energia uma pessoa preta necessita invocar e investir para se tornar "alguém", um profissional reconhecido. Mejor ("Melhor", em espanhol), é assim que meu pai se tornou conhecido na sua cidade, Maragogi, entre os gringos a quem prestava e presta serviço. Nesse ponto eu recordo da fala introdutória da música "A vida é desafio", do álbum "1000 Trutas 1000 Tretas", de Racionais MC's (2006), com a qual podemos finalizar o post

"Tem que acreditar! Desde cedo a mãe da gente fala assim: 'filho, por você ser preto, você tem que ser duas vezes melhor'. Aí 'passado' alguns anos eu pensei: 'como fazer duas vezes melhor, se você tá pelo menos cem vezes atrasado... pela escravidão, pela história, pelo preconceito, pelos 'trauma', pelas 'psicose', por tudo que aconteceu? Duas vezes melhor como? Ou melhora, ou 'cê' é o pior ou é o melhor de uma vez. Sempre foi assim! Se você vai escolher o que tiver mais perto de você, o que tiver dentro da sua realidade... você vai ser duas vezes melhor como? Quem inventou isso aí, quem foi o pilantra que inventou isso aí? Acorda pra vida, rapaz!'"        

Samuel Melo é natural de Maceió, preto, psicanalista, formado em psicologia pela Universidade Federal de Alagoas, filho de José Adelmo da Silva de Melo e Maria Helena da Silva.

Feliz agosto, coroa!


Referência e notas

[1] Porque abrange diversos temas, inclusive o da paternidade.

[2] Essa função cultural da paternidade, aliás, se tornou tema de discussão muito recentemente, quando a Natura decidiu colocar Thammy Miranda, um homem trans, como símbolo de sua campanha do dia dos pais. Nem preciso falar o que surgiu em seguida, embora me sinta forçado a criticar até mesmo alguns argumentos favoráveis ao Thammy, porque neles, acredito, a legitimidade da paternidade de um homem trans aparece como dependente de uma "boa atuação paterna" (seja lá o que isso signifique) ou, pior ainda, ela aparece como uma alternativa à "má atuação paterna" dos homens cis. Isso ficou claro pra mim nos argumentos do tipo: "ah, mas muitos homens cis não cumprem sua função de pai!" Penso que um homem trans pode ser pai independente da "qualidade" da paternidade que exerça. Em outras palavras, ele não tem maior ou menor dever de ser um "bom" pai do que um homem cis. Acho que o reconhecimento verdadeiro de um direito deve ser capaz de não reproduzir preconceitos do tipo "já que - pelo menos" ("'já que' é trans, 'pelo menos' seja um 'bom pai'"). Espero que superemos isso um dia!

[3] SANTOS, Charles dos; et al. (2019). Terra, trabalho e lutas sociais na agroindústria canavieira alagoana. Cícero Ferreira de Albuquerque; José Rodolfo Tenório Lima; Lúcio Vasconcelos de Verçoza (Orgs.). Maceió: Edufal.