sexta-feira, 10 de dezembro de 2021

Pretos e supermercados


A vida de uma pessoa preta no Brasil não é lá coisa muito fácil. Vivemos num país cujo racismo estrutural o é por causa da insistência do poder público em não assumir sua histórica tolerância à animalização de pessoas de pele escura. Convenhamos que esse sintoma é também indício da continuidade desse crime cultural, patrimônio histórico da burguesia e item de colecionadores de classe média e C, sem esquecer dos compradores de réplicas falsificadas desse racismo, os racistas das classes D Etc.

Aliás, no Brasil, o racismo não é sintoma de nada. Ele é "sinthoma", mesmo! É algo que constitui e assujeita o sujeito Brasil, não apenas responde por parte de seu comportamento e de sua subjetividade. É um Insight que a obra lacaniana nos possibilita. Difícil ter insights não fúnebres quanto ao analisante Brasil, confesso!

Tudo começa na manjedoura. Pretos, das diferentes tonalidades, têm lugar predeterminado de nascimento - e não é na Ponta Verde ou no Farol, na Avenida Paulista ou no Leblon. Esses pretos, de tonalidades diferentes, todos sofrem racismo. Há apenas uma variação na intensidade, a depender do seu grau de familiaridade com os traços do preto africano - e essa variação precisa ser levada em consideração para os efeitos mais práticos do racismo e suas matizes.
O preto brasileiro cresce entrando de cabeça baixa no supermercado, com o "não" estampado na cara e engatilhado na ponta da língua do papai e da mamãe, pronto a disparar e conter o perigoso "mãe, compra iogurte?!". Há um lugar para o preto no Brasil, e não é o da realização de desejos. A adolescência das meninas e meninos pretos também decepcionaria qualquer sonhador. Não se encaixam nos padrões de beleza impostos pela indústria televisiva, cinematográfica; servem apenas como amantes, ficantes, raramente como maridos ou esposas de pessoas brancas por quem venham, por acaso, a se apaixonar.
Adultos, quando optam pelo esforço sobrehumano de se destacarem nas suas profissões (que, por jogo do destino, consigam desenvolver), continuam marcados pelo estereótipo do ladrão, suspeito, que obteve qualquer bem material por meio do roubo, do furto. Assim, o cuscuz, o frango, o leite, o iogurte que porta na cestinha do supermercado é motivo de atenção para os seguranças. É um fenômeno que carece esquema de segurança, de "prevenção de danos" - ao cuscuz, ao frango, ao leite, ao iogurte, à cesta. O segurança preto da guarita passa o rádio para o segurança preto do corredor. Um sinal e outro e, pronto, o esquema de escolta está montado. Se você for preto, verá, ao menos, 3 vezes o segurança, quando estiver percorrendo os corredores do "patrimônio do playboy", como dizem os Racionais MC's.
Acompanhado solenemente pelo feitor, sua ida ao supermercado num dia de folga vira um pesadelo. Tratado como criminoso em potencial, você é obrigado a disfarçar o seu "banditismo", passa a se comportar como um suspeito e, assim, retroalimenta a desconfiança incondicional dos investigadores de mercadinho. Quando não incorpora o fugitivo, você personifica Zumbi dos Palmares e, então, confronta os operadores do racismo, se impõe, rebate a violência sofrida, a elabora em palavras.
- Algum problema, irmão?! - pode o investigado exclamar, em tom de interrogatório... perdão! Interrogação*. É que a gente entra na personagem!
O preto pode ser mais direto:
- Não vou roubar nada, não, viu?! Não se preocupe. Você deveria se preocupar com o playboy que acabou de entrar ali...
O resto da vivência não dá pra escrever, só viVENDO.

Nenhum comentário:

Postar um comentário