quarta-feira, 9 de junho de 2021

Amor e álcool - Coluna Polis & Cia

Era mais um dia de domingo comum em Maceió, AL. Eu saí de casa paramentado pra um compromisso. No ponto de ônibus, chegou um rapaz, certamente mais velho que eu, com uma flanela e um borrifador com álcool.

- Rapaz, só eu vim trabalhar hoje?! Não tem um vendedor na rua! - Exclamou, sorridente, a mim e a outras poucas pessoas que estavam ali.
- Sim. Não tem muitos passageiros nos ônibus, dia de hoje - Respondi.
- Cara, você já ouviu falar num negócio chamado neoliberalismo? - Me perguntou, enquanto sentava-se.
- Sim. Com certeza! - Respondi, curioso.
- Eu tô lendo um capítulo de um livro que fala disso. O livro chama "Novo Enem". É de uma autora... esqueci o nome dela... Já ouviu falar?
- Não, não... - Respondi, tentando lembrar o nome de Naomi Klein, que poderia ser a autora a quem ele se referia.
- Deve ser bom, né? O "Novo" tá assim, entre aspas, aí, vem: "Enem e o dono da voz". - Explicou, demonstrando haver entendido alguma intenção irônica no título, mesmo que os sinais realmente aplicados sejam os colchetes.
- Sim. Deve ser bom. Nunca ouvi falar sobre esse livro. Você sabe de quando é? - Respondi e perguntei.
- Ele tá aqui na minha maleta. Deixa eu te mostrar! Eu achei esse livro no lixo, você acredita?
- Acredito!! - Respondi sarcasticamente, porque novidade seria ver um livro desses na estante de algum brasileiro.
- Esse livro, essa maleta... tudo, eu tirei do lixo... Porque eu sou capaz de meter a mão no lixo, mas não meto a mão no seu bolso pra tomar o que é seu. - Continuou.
- Tudo meu é achado no lixo, mas não pego do bolso de ninguém. - Repetiu em voz alta, para as outras pessoas ouvirem, demarcando seu lugar de fala como um trabalhador, honesto, dócil.

Ele, por algum motivo, desistiu de abrir a maleta. Talvez porque o ônibus que ele esperava poderia aparecer a qualquer momento e seria uma correria guardar de novo o livro enquanto embarcasse.
- As pessoas jogam tanta coisa boa fora! - Comentou.
- Concordei, com minha expressão, que foi interrompida pela prontidão a entrar no Eustáquio/Cruz das Almas/UFAL.

Ele pegou o mesmo ônibus.

Enquanto eu passava pela catraca, ele já se dirigia ao corredor do ônibus.

- Boa tarde, pessoal! Me chamo ******, sou morador de rua, vivo em Maceió há ** anos. Hoje, eu estou aqui cumprindo minha liberdade de expressão, prestando um serviço à população brasileira. Hoje, nós vivemos uma situação dessa pandemia e vou tá passando essa flanela com álcool 70 no ônibus, exercendo meu direito de cidadão. - Apresentou-se, mais ou menos com essas palavras, aparentemente empolgado pela relevância de seu trabalho.

Relevante demais!

Poucos dias antes, quando vi pela primeira vez um outro rapaz prestar esse serviço, comentei com meu irmão sobre a importância desse trabalho no contexto da pandemia. Nesse dia, cheguei a pensar que esse outro rapaz era um funcionário da empresa de viação. Mas, claro, estamos falando de neoliberalismo... Os cobradores (que são os cobradores!) estão sendo descartados em nome do aumento dos lucros e a adição de 2 passageiros em seu lugar, quê se dirá da contratação de qualquer funcionário?! Óbvio que aquele rapaz não era um funcionário da empresa de ônibus!

Pois bem... Depois de alegremente higienizar algumas partes do ônibus e as mãos dos passageiros, como um trabalhador que se orgulha da relevância de seu trabalho, o rapaz lá do ponto de ônibus sentou-se ao meu lado, borrifando álcool nas minhas mãos (e coxas, rsrs).

- Deixa eu te mostrar, aqui, a capa do livro, pra você depois pesquisar. - Disse-me, recebendo de mim uma das moedas daquele ônibus e abrindo a maleta.

Vi o livro.

"[Novo] Enem e o dono da voz", de Joana D'Arc Ferreira de Macêdo e Elione Maria Nogueira Diógenes (2014).

- Legal. Valeu! - Agradeci.

Ele desceu às pressas no antigo Hiper. Estávamos indo no sentido Cruz das Almas.
Me senti extremamente motivado pela inteligência e força de vontade daquele homem. Me alegrei, principalmente, pelo capítulo que ele iria começar a ler.

Provavelmente, ele já leu esse capítulo e, certamente, depois dessa leitura, muita coisa vai mudar no seu modo de agir e de ver o mundo, o trabalho, os conceitos de direitos e deveres, o conceito de trabalhador, cidadão... Ficará mais difícil para ele confundir "direito" e "dever" e ele entenderá o que, provavelmente, fez com que esse livro estivesse no lixo. O conhecimento trazido por esse livro (que, aliás, tenho a obrigação de ler!) dará mais ferramentas a esse cidadão que espalhou amor em forma de álcool naquele ônibus repleto de trabalhadoras descontentes com o "rodo cotidiano", parafraseando "O Rappa", com o troco "pouco, quase nada" da passagem.

Bom, pelo menos, é isso que eu espero do capítulo... e do leitor.

Especialmente naquele dia, eu estava ciente da gravidade do quadro do tio Fábio, na UTI Covid-19, em Arapiraca. Eu sabia que ele não sobreviveria à falta de amor, de compaixão, de patriotismo, de bom exemplo, de álcool 70, de máscara, de vacina. Sabia que ele não realizaria o seu desejo, comunicado a mim na nossa última conversa, de comprar uma moto de alta cilindrada e viajar o Brasil. Eu sabia que não teria mais a ocasião de dizer que ele estava certo sobre o conjunto de direção da minha moto.
Tudo isso me angustiava e revoltava nessa pequena viagem. Porque, afinal, o que parecia ser abundante nesse herói das ruas, tem saldo negativo no governo federal. Não existe, no Planalto, o que Freud chamaria pulsão de vida e o que Hannah Arendt chamou "amor mundi"... Faltou e falta o patriotismo desse rapaz, o seu amor pela vida.

Afinal...

"Um catador faz mais que o ministro do Meio Ambiente [etc.]".

Dedico ao amigo, agente de saúde autônomo e ambulante, a música "O bem", do grandioso Arlindo Cruz. 

Samuel Melo é um psicólogo e psicanalista, formado em psicologia na Universidade Federal de Alagoas. Preto, maceioense do Trapiche da Barra.

Anderson Samuel da Silva Melo - CRP-15/6004

Instagram: @samuelmeloal
WhatsApp: (82) 9 8810-7158

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