domingo, 25 de abril de 2021

Resultados da psicoterapia - Coluna Saúde-se

Na prática da clínica psicanalítica, está clara para o psicanalista a existência de duas categorias importantes para a direção do tratamento: 1) a dimensão do pensamento e 2) a do acontecimento. Elas não são criadas no consultório, nem, tampouco, só aparecem ali, mas fazem parte da nossa experiência de vida. No cotidiano e ao longo de nossas histórias pessoais, apenas uma parte muito pequena dos acontecimentos é percebida por nossa consciência e processada em forma de pensamento. Assim, já se pode perceber, de acordo com essa hipótese, que não estamos, definitivamente, no controle absoluto das situações. Demais disto, a parte muito pequena dos acontecimentos sobre a qual nós ainda temos alguma participação e possibilidade de relativo controle, sofre com a imprevisibilidade do acaso e a ação de motivos inconscientes que reivindicam para si autoria nas decisões e rumos que tomamos.

"O Eu não é senhor em sua própria casa", já nos disse Freud. Se é que a "casa" - o corpo, os pensamentos, os afetos - é mesmo do Eu - essa entidade que percebe, pensa, quer, deseja e que permite que um certo Samuel escreva um texto falando sobre resultados de uma psicoterapia.
Uma vez reconhecida essa dimensão do acontecimento inconsciente, que independe do pensamento e da consciência, falemos um pouco sobre como isso fornece material de compreensão para nós, analistas, conduzirmos os casos que atendemos. Lembrando que o "acontecimento inconsciente" seria algo como o representante humano da dimensão da natureza e seus acontecimentos até então inevitáveis e incontroláveis - e aqui não estão incluídos, é claro, aqueles eventos sabidamente relacionados com mudanças climáticas decorrentes da ação humana.

Durante algum tempo, durante o meu período de estágio em psicologia, atendi uma pessoa que parecia não dar a mínima para o que eu lhe falava... A pessoa parecia muito mais preocupada em descarregar tudo o que nunca falou para ninguém em sua vida, sem enxergar necessidade ou sem querer ouvir qualquer palavra proferida por mim, como analista.

- E agora? - pensei, por semanas.

O trabalho do analista se dá, exatamente, através da interpretação do que ouve e do ato analítico, que, muitas vezes, é praticado através da palavra do profissional. O que eu iria fazer, então? Parecia que o meu trabalho ali estava sendo feito em vão.

Mas, com o passar do tempo, no ritmo da minha curiosidade e angústia, por querer desenvolver um trabalho adequado, fui percebendo que algo acontecia na experiência daquela pessoa... Mudanças ao nível do seu comportamento e do direcionamento de sua atenção - ela passava, a cada semana, a me falar sobre coisas que decidia fazer e deixar de fazer, que lhe distanciavam do rumo autodestrutivo que até então seguia; falava sobre como refletia a respeito de suas avaliações dos acontecimentos de sua vida, aproximando-se, cada vez mais, de soluções pautadas na preservação de sua vida e de seu bem-estar. A psicoterapia estava surtindo, justamente, os efeitos que eu buscava com minhas intervenções.

O que aconteceu?

Bom, eu percebi que, na prática, diante de mim estava uma pessoa, como qualquer outra, "dividida", no sentido freudiano e lacaniano do termo... Uma pessoa dividida ao meio... Metade consciente, metade inconsciente.

A consciência daquela pessoa poderia até não me dar ouvidos (não posso dizer que se tratasse disso!), mas seu inconsciente, com sua memória infalível, estava atento ao que um jovem novato da psicanálise falava. O inconsciente daquela pessoa estava, a cada sessão e a cada dia, dentro e fora daquele consultório ensolarado da clínica-escola, se apropriando e integrando em seu curso de palavras, as curtas frases que eu gotejava naquela esteira de significantes que passava diante de mim uma vez por semana.

Poderia ser que aquela pessoa sequer pensasse sobre o que eu falava, mas minhas intervenções produziam efeitos ao nível dos acontecimentos, sem dúvida! Considerando a hipótese de ela mesma não perceber tais resultados (o que não foi o caso!), ainda assim, eu poderia reconhecê-los como resultados positivos, de um ponto de vista técnico, considerando os objetivos gerais de uma análise, ou seja,  mitigar o sofrimento e impulsionar o sujeito para longe da pulsão de morte e para perto da pulsão de vida.

Creio que lhes apresentei um bom exemplo do que são essas duas dimensões importantes na clínica - o pensamento e o acontecimento; e que pude esclarecer algo sobre os resultados de uma análise/psicoterapia.

Na clínica, as coisas não somente são ouvidas ou faladas.
Na clínica, as coisas acontecem!

Samuel Melo é um psicólogo e psicanalista maceioense, preto; formado em psicologia pela Universidade Federal de Alagoas (2020), ex-estagiário do Serviço de Psicologia Aplicada do Instituto de Psicologia da UFAL.

Instagram: @samuelmeloal
Anderson Samuel da Silva Melo - CRP 15/6004


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