quinta-feira, 17 de agosto de 2023

Apagão e psicanálise

Transição energética, Pré-sal, matriz energética, hidrogênio verde, carros elétricos, energia de biogás, termelétricas, bandeira vermelha... São tantos termos para tratar de uma questão que nos excita sobremaneira, seja por um lado ou por outro: a matriz energética do Brasil. A questão da energia limpa e renovável nos provoca os nervos tanto quanto a questão da energia proveniente do petróleo ⛽️. Se você é ambientalista radical, talvez será tentado a se opor a todo tipo de nova exploração de poços de petróleo, o que, para outros, seria razão de muita comemoração e esperança. 

O Brasil será autossuficiente em petróleo! Há 17 anos, muito se repetiu essa frase nos jornais, nas rodas de conversa, nas salas de aula. A descoberta do Pré-sal aglutinou promessas de soberania nacional, investimentos em educação, pleno emprego e quilômetros, muitos quilômetros de passeios em família, tendo em vista o barateamento da gasolina, do diesel e, em consequência, o barateamento de todos os itens de consumo - do lanche ao suvenir. 

A questão da energia mexe muito com a gente. Todos nós testemunhamos a confusão que deu o apagão do último dia 15 de agosto. Milhões de estabelecimentos comerciais prejudicados: imagens de um pequeno empresário agoniado, tentando salvar a validade das carnes de seu freezer. Esse registro, em específico, me foi marcante; foi marcante porque me fez pensar: "no fim das contas, tudo na nossa vida é uma questão energética - nos motores, nas câmaras de resfriamento, nas linhas de transmissão, nas camadas do Pré-sal... no nosso estômago". A mais alta engenharia de petróleo ou a mais refinada linha de pesquisa em energias renováveis apontam para algo básico, basilar, "aquela que é a marca do nosso estranho destino sobre a terra" - a morte, como diria Chicó. Sem energia elétrica, não há conservação do elemento básico para nossa sobrevivência, que é o alimento. Sem ela, não poderíamos manter as atuais taxas de expectativa de vida. Sem a energia dos combustíveis, não haveria ambulância 🚑, não haveria "escoamento de produção" para os itens que movimentam nosso comércio, nossas trocas materiais, químicas, simbólicas, psíquicas.

Tudo, no final das contas, é uma questão de energia; inclusive, a nossa mente. 

A noção de "pulsão" que Freud nos trouxe segue aplicável a nossa realidade, mais de 100 anos depois da criação da psicanálise. "Tudo é bost*!", resumia a vida o meu tio-avô Zé do Carmo, que já encontrou-se com seu "carma", o "único mal irremediável", parafraseando, novamente, Chicó.

Há sabedoria na ofensiva frase do tio Zé do Carmo. Há sabedoria porque, no final das contas, "tudo é bost*", mesmo. O alimento vegetal que nos garante os nutrientes essenciais à sobrevivência é produzido em solos enriquecidos com matéria orgânica - para ser mais claro, esterco bovino, titica de galinha, folhas podres etc. Sem falar das repugnantes hortas ecológicas caseiras regadas a urina e fertilizadas com esterco humano - ou, para ser mais honesto com a sabedoria do tio Zé do Carmo, fertilizadas com bost*.

A proteína animal que nos alimenta é fruto da quase perfeita conversão do alimento em energia, que alimenta as células dos bois, porcos, frangos e outros animais que assassinamos diariamente. Essa conversão é operada pelo sistema digestivo, que também produz, concomitantemente, esterco. 

A existência material, simbólica, psíquica do animal humano depende da interação entre os mundos orgânico e psíquico. Há um equilíbrio desequilibrado, uma vez que a principal causa do desequilíbrio existencial humano é, exatamente, essa interação problemática entre os dois mundos.

A noção freudiana de "pulsão" une o orgânico e o psíquico, isso porque a pulsão seria o ponto limítrofe, seria a fronteira entre o orgânico e o psíquico, seria o ponto de transição de uma realidade para outra, a ponte de comunicação entre a realidade psíquica e a realidade objetiva. A ideia de pulsão é, antes de tudo, uma noção de "energia", e isso está claro na rede de significações que se pode atribuir ao termo "pulsão" - propulsão, moção, pulsação etc. A pulsão seria a energia fundamental que permitiu que o corpo humano passasse de uma relação primária com o mundo externo para uma relação mediada pela palavra, pela linguagem; por isso mesmo, uma relação sofisticada e, ao mesmo tempo, problemática, incompatível, embora simbiótica. É, mais ou menos, como tem acontecido com a Inteligência Artificial, que só pode ser chamada de inteligência porque foi afetada pela linguagem. O corpo robótico ganha vida, ganha capacidade de se comunicar com corpos humanos e com outros corpos robóticos, ganha capacidade de cometer erros, como nós cometemos no trânsito e como veículos da Tesla cometem, vez ou outra.

Nós, dificilmente, vemos a energia elétrica, jamais vemos a energia química que garante nosso pensamento, nosso movimento. Dificilmente, vemos a energia do carro, do ônibus ou avião que nos levou ao trabalho ou à visita de um parente. Contudo, a importância da energia é inegável e, sem ela, tudo entra em colapso, tudo se imobiliza.

O que diremos, então, da energia psíquica, esse emaranhado de invisíveis fios de alta tensão não sinalizados? O que diremos do trabalho dos e das psicanalistas, esses eletricistas, eletrotécnicos e engenheiros da energia psíquica? 

É um trabalho duro, complexo, pouco reconhecido e, frequentemente, de remuneração inferior a todas as profissões de energia do país. Não existe risco de apagão da energia psíquica no Brasil, mas existe o risco de um colapso, de um curto-circuito num curto prazo. Há risco de novas crises coletivas de ansiedade, mais intensas do que as crises que já vivemos diariamente, sozinhos e em grupos.

Por Samuel Melo 


Samuel Melo é um psicólogo e psicanalista lacaniano que mora, atualmente, na cidade de Roteiro, AL.

Instagram: @samuelmeloal

WhatsApp: 55 82 9 8810-7158

Anderson Samuel da Silva Melo - CRP 15/6004


Imagem: www.mundoconectado.com.br




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