Nessa última semana vivi uma experiência que me fez refletir bastante. Na verdade, eu já havia visto algo parecido e, já há algum tempo, vinha pensando a respeito desse assunto. Tanto que ele chegou a figurar entre as minhas opções de temas para meu TCC, há alguns meses atrás.
Vamos lá... Eu estava numa fila gigantesca para entrar num supermercado em Maceió. A entrada ao estabelecimento estava sendo rigorosamente controlada, principalmente por conta do novo decreto do governador de Alagoas, Renan Filho, que impôs condições mais ou menos rígidas para a circulação de pessoas nos poucos estabelecimentos comerciais autorizados a manterem as portas abertas durante esse terrível tempo de pandemia que nos assola.
- Ei! Ô, picolé! Picolé! - Gritou uma senhora a um vendedor de picolés que passava por entre aquele corredor de gente.
- Ô, picolé! Ele não tá ouvindo! - Gritou e comentou em seguida, rindo-se, outro senhor ali enfileirado.
Achei a situação curiosa porque o vendedor chegou a olhar para o senhor que o chamou, mas voltou ao seu caminho logo em seguida, dando as costas para aqueles que o chamavam.
- Ele, provavelmente, achou que não era ele a quem chamavam! - Pensei.
Cerca de dois ou três minutos depois, o vendedor voltou, passando novamente por entre aquela fila.
- O senhor não ouviu "não" "eu" chamando? - Perguntou-lhe o senhor que o chamara.
- Se chamar de "picolé" eu não venho mesmo não! Eu tenho nome. Tem que chamar o ser humano pelo nome! - Respondeu o vendedor, retirando-se em seguida, enfurecido.
- Oxe! - Surgiram alguns sussurros, seguidos de risos.
- Picolé! Ô, picolé! - Passou a gritar um outro homem, em tom de deboche.
- Cara doido da p****! - Continuou, meneando a cabeça, em tom de reprovação à atitude do vendedor.
O "oxe" que surgiu tanto na fala quanto nas expressões de algumas pessoas presentes nos diz mais do que um "oxe". Ele surge nessa ocasião como significando surpresa diante de um comportamento inesperado e "inadequado" por parte de um vendedor, que "deveria", como todos sabemos e reivindicamos, "ser gentil e amável" para com seus potenciais clientes, quase que um robô, sem afeto, sem sentimentos, sem nome próprio. Naquele momento eu lembrei de outro robô sem nome lá do centro da cidade, o "tapioca", que, diferentemente do "picolé", parece orgulhar-se dessa marca que faz aí o papel de um pronome, por substituir-lhe o nome próprio, que, inclusive, não conheço.
Essa correspondência automática entre nome e função social, ou, melhor dizendo, essa substituição do nome próprio pela função social, a de "vendedor de picolé" ou de "tapioca", aparece no caso do "picolé" claramente como um ponto de conflito e, portanto, de sofrimento para ele. Sofrimento porque justamente ele, o sofrimento, "determina-se pela narrativa e pelo discurso nos quais se inclui ou dos quais se exclui [...] [já que] há um trabalho social da linguagem que se cruza na determinação do sofrimento" (Christian Dunker, 2015, p. 25). Os porquês daquele vendedor se irritar por lhe chamarem, não por seu nome, mas por sua função, ou pior, pelo produto que oferece, não são sondáveis assim, numa observação distante, nem tampouco conhecê-los e expô-los seria conveniente. Somente ouvindo-o sob as condições adequadas de análise é que se poderia captar de modo aproximado o sentido desse sofrimento que se faz ouvir através da sua indignação. Posso dizer, no entanto, com certeza, que há algo de coletivo, sim, nesse "processo", não de identificação necessariamente do ponto de vista do sujeito nomeado (ou "desnomeado"), mas de identificação do ponto de vista dos outros.
Vamos lá... essa correspondência entre nome e função social é algo característico do nosso país e é resultado, posso dizer, da chegada dos colonizadores à nossa terra firme. Anne Araujo (2007) nos mostra como somos vistos (e nomeados) do ponto de vista do colonizador, isto é, como "vassalos úteis", "brasileiros", ou seja, aqueles que trabalham o/com o pau-brasil, tal como "caminhoneiro" é aquele que trabalha dirigindo caminhões e "pipoqueiro", na língua alagoana usual, é aquele hábil senhor que vende "pipocas". Assustador, né, minha filha? Diria o dr. Dráuzio Varella. Esclarecedor, né, minha filha? Digo eu.
Entre "eiros", "eiras" e "beiras", o leitor poderá questionar: mas já se foi o tempo de colônia, assim como os colonizadores! Só que o processo de identificação ou, melhor dizendo, o "processo de etiquetagem" continua em nosso Brasil varonil, mais vermelho do que verde e amarelo (pau-brasil = vermelho, o leitor entendeu!). Dando um salto no tempo para o período pós-colonial e citando Nicos Poulantzas, Michel Pêcheux (1995) explica como o olhar do senhor de escravos que se tornou dono de indústrias é reproduzido pelos proletários ou empregados: "As relações humanas naturais fundadas em uma hierarquia de subordinação econômico-social dos produtores [...] são substituídas pelas relações ‘sociais’ de indivíduos automatizados, situados no processo de troca" (p. 73). É nesse ponto que o produto faz nome! "Você vale o que tem, vale o que tem, na mão, na mão!", cantam os Racionais MC's na música "Um por amor, dois por dinheiro" (2002). Em sentido um pouco diferente do da música, podemos dizer que, no Brasil industrializado, "você é aquilo que você tem na mão", nesse caso, aquele homem tinha o picolé na mão, logo o é. Sua indignação ali naquela fila diz algo sobre um processo identificatório ao qual resiste; esse que corresponde ao imperativo "trabalho, logo o que produzo existe". Nessas condições, para existir, ele precisa estar ligado a esse produto, o "picolé". É forçado pelo olhar dos outros ali daquela fila a derreter-se e se misturar ao picolé que vende, tornando-se ele e o picolé um só, um todo dilacerado. Eu apostaria que todos ali naquela fila projetaram naquele vendedor o olhar centenário da elite exploradora, aquele olhar que vê o pobre como "carvão e lenha pra queimar", como diria Darcy Ribeiro.
Por outro lado, parece que o dono da marca de picolés e sorvetes de iogurte que esse senhor vende não precisa recorrer a uma identificação simbiótica com o produto que produz, porque o dinheiro que ele ganha com a venda desses produtos lhe dá acesso aos bens materiais, os quais o fazem existir, ter um nome, um CNPJ. Mesmo assim, acredito que seja difícil para esse empresário ser identificado apenas pelo seu nome próprio. Provavelmente, quando ele estacionar no supermercado onde estávamos, qualquer um de nós se referirá a ele como "o cara da Frontier preta", por exemplo, nos referindo a seu carro.
Mesmo o senhor dono de indústria passa por essa fileira de etiquetagem, embora, provavelmente, sofra menos do que o "picolé", uma vez que tem acesso a quantos picolés queira... da posição de senhor, não de vendedor. Ele deve sofrer menos, também, porque, mesmo sendo "o cara da Frontier preta", ainda assim ele é "um cara". Também, por ser reduzido a uma Frontier preta, provavelmente ele não ouvirá "desaforos" ou será motivo de chacota numa fila de supermercado. Uma Frontier preta não é o mesmo que um carrinho de picolé!
Samuel Melo é natural de Maceió, um homem pardo, psicanalista, formado em psicologia pela Universidade Federal de Alagoas.
Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/3326945607744321
Referências
ARAUJO, Anne Francialy da Costa. Língua e identidade: reflexões discursivas a partir do Diretório dos Índios. Maceió: Edufal, 2007.
DUNKER, Christian Ingo Lenz Dunker. Mal-estar, sofrimento e sintoma: uma psicopatologia do Brasil entre muros. São Paulo: Boitempo, 2015.
PÊCHEUX, Michel. Semântica e Discurso - uma crítica à afirmação do óbvio. Campinas: Editora da Unicamp, 1995.