segunda-feira, 6 de maio de 2024

Declaro guerra à "'trend' das plaquinhas"


As redes sociais têm o poder de escancarar nossas vinculações subjetivas. Somos instados, constantemente, a nos posicionar a respeito de tudo: o fim do relacionamento do Davi, a fala de um político, uma decisão do STF. As BigTech querem as nossas digitais, o número do nosso sapato e o peso dos nossos passos. As redes sociais falseiam nosso semblante com seus filtros de imagem, sim, mas também são capazes de extrair a nossa verdade - sexual, política, social -, frequentemente conseguindo que nós mesmos a tornemos pública através de um "story".

Esse paradoxo - extrair verdade e falseá-la, ao mesmo tempo - nos mostra que as redes sociais podem até mesmo ser um ambiente propício para o surgimento de lapsos do inconsciente, pois a falha da lógica é o principal indicativo do seu aparecimento. O inconsciente pode muito bem ser captado no ambiente virtual, graças a uma série de condicionantes ambientais, como a sensação de anonimato, por exemplo. Para ser sincero, não é difícil observar o inconsciente em todo e qualquer lugar onde haja humanos, com ou sem avatares. 

O fato de as redes sociais serem assim capazes de captar nossa intimidade mostra que há interesse econômico por detrás das cortinas. Sabendo nossas preferências comunicadas publicamente e aquelas que escondemos no modo navegação anônima, uma poderosa empresa de tecnologia da informação poderá nos direcionar um tipo específico de publicidade ou mesmo compartilhar nossas informações privadas com outras gigantes do varejo e do entretenimento, como foi revelado há alguns anos no caso do Facebook.

A sua intimidade, o seu padrão de comportamento nos aplicativos, nos mecanismos de busca, suas mensagens privadas, tudo isso é um tesouro disputado por grandes corporações, que, com tais informações, serão capazes de construir o produto e a publicidade perfeitos para você. 

É verdade que não é possível existir qualquer equivalência entre a psicanálise e as BigTech. Ainda que consigam extrair informações íntimas dos usuários, estas últimas não o fazem com a mesma finalidade, tampouco com a mesma condição da psicanálise, que sabe fazer surgir e depois seguir o curso do inconsciente de maneira magistral. Na verdade, essa não equivalência entre psicanálise e BigTech as coloca, naturalmente, em posição de disputa. Como assim? Enquanto a invasão da privacidade por parte das redes sociais visa à captação do perfil do potencial consumidor para lançá-lo numa cadeia de consumismo bilionário, a psicanálise, com seu procedimento ético e sigiloso, visa à resolução de conflitos subjetivos, o que costuma fazer com que alguns sintomas de origem psíquica sejam enfraquecidos, dentre eles, a compra compulsiva de produtos e serviços, que, no fundo da subjetividade humana, surge como uma tentativa de satisfação que jamais tem sucesso absoluto. O único sucesso total logrado nessa operação é aquele das grandes corporações, que lucram com o fetiche consumista cada vez mais exacerbado. 

Ciente dos perigos dessa lógica capitalista para a subjetividade humana, a psicanálise, pelo simples fato de existir, arma seus flancos contra a forma de funcionamento das grandes corporações da tecnologia da informação. Ao mesmo tempo, essas BigTech voltam seus esforços contra a psicanálise, também de forma natural.

Não consigo ver tal situação de outra forma, a não ser como uma rivalidade entre duas visões de mundo; uma que busca a libertação mental da civilização e outra que sobrevive das entranhas da subjetividade humana.

O curioso é que essa disputa ideológica e econômica começa a ganhar mais clareza do que antes. Começam a surgir movimentos como a "trend" que desaconselha o tratamento psicanalítico e as psicoterapias de um modo geral. E não adianta se dizer que "não é bem isso", porque, na profundidade discursiva, é isso sim! 

Recentemente, uma clínica estética no interior do nordeste brasileiro divulgou um vídeo no qual uma pessoa segura uma placa com a seguinte afirmação: "você não precisa de terapia". Poucos segundos depois, o mesmo vídeo mostra outra pessoa na frente da clínica estética segurando uma placa com os dizeres: "você precisa de um tratamento estético". O mesmo tipo de vídeo é facilmente encontrado nas redes sociais. O protagonismo desses vídeos é assumido por lojas de capinhas de celular, de roupas, de jóias etc., variando no conteúdo, mantendo, porém, a mesma forma. 

Evidente que uma clínica estética no interior do nordeste não fatura 0,00000000001% do que lucra a menor BigTech do mundo, mas isso não a impede de reproduzir, mesmo que de forma distraída, uma estratégia adotada "na baixa"[2] pela maior das BigTech. Dardot e Laval (2016)[1] demonstram eloquentemente o quanto a racionalidade de uma grande predadora corporativa pode ser, facilmente, assumida pelo menor dos empreendimentos ou pelo mais humilde dos empreendedores. A disputa ideológica da psicanálise e psicologia de um modo geral com as BigTech surge sob roupagem menos camuflada, como se um grupo de guerrilha comprasse, convenientemente, a briga e a missão de fazer chegar aos mais longínquos territórios a racionalidade das grandes mineradoras da subjetividade humana, que pouco se importam com o rompimento de barragens ou com a subsidência do solo de alguém. 

Nessa lógica predatória do consumismo, todos os empecilhos ao sucesso de vendas, independente do que se vende, devem ser derrubados sumariamente. Anteontem, enquanto escutava música no Spotify, escutei um anúncio ilustrativo do que estou falando: ouvia-se a voz de uma mulher que representava a mãe da segunda pessoa presente na publicidade, um rapaz. Ele perguntava à mãe fictícia: "mãe, o que a senhora vai querer?" A mulher respondia algo de forma distraída e desinteressada, ignorando a proximidade do Dia das Mães. O filho logo lhe chamava a atenção: "não, mãe! Tô perguntando o que a senhora quer ganhar no Dia das Mães". Respondendo, ela dizia: "não quero nada, filho! Não precisa!". Em seguida, uma voz masculina, de fundo, se direcionava a mim, dizendo algo como: "não escute a sua mãe. Ela quer um presente, sim", mostrando, em seguida, que a anunciante seria o lugar perfeito para a compra desse tal presente. 

Isso corroborou com o meu pensamento sobre as estratégias das grandes corporações de derrubarem por terra qualquer argumento, qualquer comportamento que possa diminuir a sua projeção de vendas. No caso do comercial, o empecilho à venda de presentes seria a voz de uma mãe fictícia que representaria as mães brasileiras de um modo geral. Não existe compromisso das grandes varejistas e corporações brasileiras com a voz da população. Não há escuta! Há, sempre que se pode, bisbilhotagem, vigilância, um tipo de voyeurismo cuja perversão fica evidente nos efeitos que produz: crises de ansiedade, depressão, padecimentos atrelados à impossibilidade de comprar isso e aquilo. Quem faz a "'trend' das plaquinhas" contribui com o silenciamento da subjetividade humana, mesmo que seu lucro obtido com isso seja muito inferior ao de uma grande empresa. 

A "trend" que ataca a psicoterapia deve ser combatida por todas as psicólogas e psicólogos alagoanos e brasileiros, porque ela golpeia a saúde mental da população e contribui com a subjugação de profissionais tão necessários e tão desvalorizados no Brasil. Devemos atacar não somente a ponta do iceberg, mas também a base desse tipo de desprezo contra a categoria da psicologia. O corpo submerso desse iceberg da desvalorização da psicologia é a mentalidade predatória de muitas BigTech espalhadas pelo mundo, que colonizam uma vez mais a mente do nosso povo.

A "'trend' das plaquinhas" deve ser criticada e combatida, sim! 

Os instrumentos jurídicos dos sindicatos e conselhos de psicologia brasileiros já deveriam estar em operação contra esses ataques covardes à "profissão perigo" que é a já combalida psicologia brasileira, feita por humanos; mais conhecidos como psicólogas e psicólogos. 


Referências 

[1] Dardot, P.; Laval, C. (2016). Nova razão do mundo: ensaio sobre a sociedade neoliberal. Boitempo Editorial;

[2] Em Alagoas, "na baixa" é uma expressão traduzível por "na encolha", "às escondidas", "discretamente".